sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Baratas tontas


(Arte: autoria desconhecida)

Que correria é essa, alguém pode me explicar? Para onde vai todo mundo com tanta pressa? Tirar o pai da forca? Eu quero entender – diferentemente da frase atribuída à Clarice Lispector “viver ultrapassa qualquer entendimento” – para quê tudo isso nesta época do ano? Ao compreendermos um processo, conseguimos nos colocar no mundo de modo mais consciente, não a passeio, e, portanto, agir de modo menos animal e impulsivo. “Basta de clamares inocência”, diz a música de Cartola.

Algumas pessoas praticam esporte sempre; outras, só em dezembro. São os adeptos da Corrida Maluca junto a Mutley, Penélope Charmosa e toda a turma – com Dick Vigarista, claro, ditando “novas” regras de, por exemplo, como roubar a rara vaga disponível no estacionamento de um shopping. Se você já esteve num lugar assim neste período, sabe do que estou tratando. É constrangedor presenciar cenas em que ética e generosidade são trocadas por coisas tão perecíveis.

As lojas estão entupidas, os caixas têm filas gigantescas, nos hipermercados carrinhos no melhor estilo bi ou tritrem são empurrados ou puxados pelo vivente “sorteado” pela própria família. Toda reclamação de falta de dinheiro vai-se por água abaixo. Cerveja, vinho e espumante, refrigerante, carnes, temperos, enlatados e afins vão se juntando, em fardos, aos itens já escolhidos no fundo do pequeno transporte de carga. Agora, o esforço é válido e, os maridos, de modo geral, não se importam com a demora nas compras.

Já passou na rua da Praia em Porto Alegre ou na 25 de Março em São Paulo? E em Ciudad del Este no vizinho Paraguai? “Parece uma praça de guerra”, disse-me alguém. Reviram cestos e prateleiras na ânsia de encontrar um regalo para dar sentido à vida. Estabelecimentos para públicos mais bem aquinhoados não escapam da manifestação do consumo exacerbado. E dá-lhe propaganda incitando o comprar – bens são adquiridos pelo capital e a virtude nasce quando o consumidor passa a usar um determinado objeto. Ô maravilha de sociedade a nossa!

Em manchetes, a mídia confirma a onda de saque autorizado mostrando gerentes a estimular vendedores a não perderem clientes. Pareço ouvir: “Precisamos bater a meta”. No final, no microuniverso, o saldo de vendas é bom, mas com um macrorresultado doloroso: altos índices de acidentes em rodovias, a maioria por excesso de álcool e velocidade. Carros retorcidos, vítimas estendidas lado a lado, choro de familiares que constatam ou recordam como o Natal e o Ano-novo não são mais datas para equivocados festejos. Sem falar dos excessos de comida, afogamentos, mal-estares, vaidades, fingimentos...

Apesar de o ciclo vicioso se repetir, como é de se esperar, e nada mudar efetivamente, todos fazem suas apostas de que o Natal e o Ano-novo serão inesquecíveis desta vez. O peru é especial porque apita quando pronto e traz um molho feito... sei lá, na Inglaterra. A roupa branca da virada trará sorte e a estreia da lingerie virá com um emprego, o novo namorado, a família menos triste e hipócrita. “O Natal me deprime porque família não é fácil”, me diz uma amiga. “É verdade”, respondo. Se a família soubesse do seu valor e potencial, amaria mais, na prática, e pronto.

Essas criaturas enlouquecidas buscam algo que não existe num centro comercial, mercado, padaria, viagem... Conclui-se o óbvio: os produtos vão estar nas prateleiras no dia primeiro de janeiro, não vão fugir. Encher o carrinho e voltar para casa com um punhado de sacolas cheias completa o vazio de suas vidas. Esbanja-se como se só o contrário fosse um mal. Enquanto isso, irmãos nossos, perto ou longe, carecem de um pouco desse muito e seguem suas jornadas sem a prodigalidade da vida contemporânea.

Possivelmente, tais pessoas afobadas estão atrás daquilo que protelaram o ano inteiro. Enganam-se que, consumindo desvairadamente, vão melhorar um projeto, a casa, educar o filho, concluir um curso – tudo o que não se fez, não se começou ou concretizou. A checagem dos itens pendentes da agenda está sem o risquinho que confirma que a ilusão não faz mais parte do gigantesco abismo de seu dono. Assim, a pressa equivale a um pedido de socorro, de atenção, de autopreservação. Quem ousará tirar as próprias máscaras? (Adriane Lorenzon) 

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Cucas para o Natal


(Foto: autoria desconhecida)

Peguei as fôrmas emprestadas e a receita com a querida tia Nadir. O intento? Fazer cucas para o Natal. Deliciosas, diga-se de passagem, e recheadas com coco. Minha irmã Ana reclamara que depois que nossa mãe morreu não tínhamos mais “aquele” espírito natalino que os europeus legaram à culinária gaúcha: cucas, bolachas enfeitadas, docinhos. Assim, decidi botar a mão na massa. Pronto. Não tem mais volta. Aos desavisados, resumidamente, cuca é um pão doce.

Certa de que dispunha dos ingredientes, pus-me a quebrar os ovos, amornar a água, separar as medidas de açúcar, leite, fermento, nata. Aliás, um prato nada light... Comecei cedo, passava das oito da manhã. Não tenho grande experiência em panificação, porém, dei-me conta, ao acrescentar farinha várias vezes, que a coisa seria mais demorada do que imaginava. O papel indicava amassar (e não bater como se faz em bolos, tornando o processo mais rápido). Então, colocava o pó do trigo e a massa respondia ficando durinha e firme.

Preparar uma comida para alguém ou para si mesmo é doar ou fazer florescer amor e dedicação. São horas e horas de misturas, mexidas, testagens. Tudo para homogeneizar as partes. Sem resistir, vou logo me autorizando a comer pedacinhos da massa crua. Adoro! Desde criança faço isso. Experimente! No meu caso, não houve ninguém para me censurar e dizer: “Vai fazer mal, menina! Não coma isso”! E eu, “nem bola”, como se diz nas bandas do Sul para a expressão “dar de ombros”. Meti a mão e me fartei com a iguaria.

Embora não seja uma exímia fazedora de rango, cozer é a minha praia. A preferência descamba para o universo dos salgados e agridoces. Programa legal é reunir-me a amigos ao redor da mesa e, enquanto todos conversam, relembram histórias e contam causos, eu vou lidando com os alimentos. Sem pressa, o amor se infiltra nos furinhos do macarrão, no ramo do alecrim, nos segredos que compartilho... Para cozinhar não há mistérios: é necessário sensibilidade e gostar de fazer.

Na receita original da tia, o recheio da cuca é composto de leite, açúcar e coco. Eu dei uma incrementadinha e incluí leite condensado. Aprecio essa combinação. Apesar de ser tudo a mesma coisa. Enquanto a massa descansava e crescia a olhos vistos, fui prepará-lo. Nunca tire os olhos da panela. Por quê? Arrá! Ou gruda no fundo ou o leite entorna e lambuza a panela, o fogão... Faça-o em fogo baixo após levantar fervura e tenha calma. Muita, de preferência. Assim você domina a química ocorrida ali e não o contrário. Simples assim.

Depois de algum tempo mexendo, desliguei o fogo e fui almoçar a comidinha preparada pela secretária Marli. Foi ela quem me alertou que o ponto era aquele mesmo. Se continuasse fervendo, chegaria ao de doce de leite e no lugar de recheio de cuca, eu cortaria barrinhas. Marli é descendente de alemães, povo habilidoso em quitutes como o famoso apfelstrudel – folhado de maçã e canela.

Nesse ínterim, a massa já crescera o suficiente. Era a vez de enformar. Primeiro, dar aquela amassadinha, abri-la e aplicar o recheio. Como ainda estava quente, precisava deste, frio ou, pelo menos, morno. Mexi um tempão – enquanto o fazia, pensava em como tudo na vida exige pa-ci-ên-cia. Quando se tem consciência disso, fica mais fácil e prazeroso viver. A felicidade torna-se alcançável, pertinho de nossas mãos. E eu lá mexendo, mexendo – ora no sentido horário, ora ao revés – e deixando de obrigar a mente a pensar. Acho que a esvaziei, como sugere o budismo.

No total, quatro cucas grandes e uma pequena. Último passo: aplicar “farofa” (feita de açúcar, nata e farinha) na cobertura e enforná-las. Lá se foram as cucas tornarem-se, efetivamente, cucas – o que só ocorreria quarenta minutos depois. No jantar comi... Adivinha? Cuca, lógico. Ué, mas não era para o Natal? Ahã. Desculpa para comer antes de todo mundo? Ah, um cozinheiro carece de autocrítica para avaliar os comentários dos outros! Resultado: aprovadas, até pela tia Nadir. Não é mole não! E olha que as dela são maravilhosas. Agora é aguardar a reação dos olhinhos de Ana. Acho que ela vai gostar. (Adriane Lorenzon) 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Respeitem meus cabelos brancos


(Foto: autoria desconhecida)

O cantor e compositor paraibano Chico César escreveu, alguns anos atrás, canção com o mesmo título desta crônica, mas colocou vírgula depois de “cabelos” – queria chamar a atenção de um público não negro. Ele abordava uma verdade: a discriminação com o crespo da afrodescendência. Aqui, de propósito, renunciei à vírgula porque a intenção é diversa: tratar de preconceito, porém, com o prateado de minhas madeixas. Enfim, resolvi assumir o grisalho. Chega de tinturas, esperas em salão, testa manchada, lambuzos em casa...

De início, o corante servia para mudar a cor, dar um tchan no estilo pessoal. Como uso cortes curtos ou curtíssimos há duas décadas, ninguém os percebia. De uns anos para cá, se me demorava em retocá-los, notava que a situação estava, digamos assim, junta e misturada. Acho graça e me divirto muito com o olhar surpreso de quem ainda não sabe dos meus fios descoloridos pela vida. Alguns brincam: “Ah, é como se você tivesse feito luzes”.

No entanto, atualmente, a coisa está séria. Tem até mechinha a William Bonner. O motivo da existência tão precoce desse branquicelismo todo, desde os 18 anos, pode ser predisposição genética. Como de uns anos para cá passei por situações estressantes, cogita-se, portanto, outro fator. Mas... adianta saber? Nada vai alterar. A medicina confirma a falta de soluções na área – isso está claro e é tranquilo para mim. Já para o meu semelhante, não. Aí a coisa complica – somos seres sociais, está lembrado?

Ao falar na possibilidade de deixar à mostra a melena assanhada, tenho ouvido de cabeleireiros e amigas que sou muito jovem para tal intento. Modéstia à parte, apresento mais ares de moleca do que minhas quatro décadas novembrinas. Claro, fui aceitando a imposição descarada da sociedade de que aparentaria um envelhecimento antecipado e pintava uma vez mais. Observe. Cabeleira curta precisa ser cortada a cada 15 ou 20 dias. Senão, dá uma impressão de desleixo – e se o corte ocorre nessa periodicidade, a tintura vai-se embora.

Poucas pessoas ao meu redor vivem situação parecida – fico, novamente, deslocada no mundo. Aquele lance do pertencimento... Então, matutei: “Vou para a Internet ver o que a mulherada anda falando. Impossível que só euzinha esteja pensando em assumir os brancos”. Delícia nos sentirmos acompanhados! Não deu outra. Lá estavam depoimentos de mulheres com a mesma dúvida cruel. Senti-me acolhida e encorajada. Viva a web!

Caro leitor, você acha que homossexuais e negros são os únicos discriminados? Qual nada! Embora em grau e metodologia distintos, mulheres brancas, de classe socioeconômica média ou elevada, também sofrem com o mal da ignorância de outrem. Por que seria diferente comigo? Uma “obrigação” nos impele a escondermos a velhice. Ora, quem disse que envelhecer é feio, errado, fora de moda e demais expressões que nos ensinaram para reprimir vontades, ideias e sonhos frente à vida? É a ditadura da aparência jovem em pleno vigor! Quem consegue se esconder por tanto tempo? Dercy Gonçalves? Glória Maria?

Nunca tive problemas com idade. Contudo, agora, sou nova pessoa e não quero pintar os cabelos. Ponto. A não ser que profissionalmente se faça necessário. Curtir essa fase, sim. Imensamente! É o meu envelhecer. Sempre disse: “Ao chegar aos 60, serei linda”. Olha só, faltam-me apenas duas dezenas de anos. A repórter Denise Brito, do jornal A Folha de São Paulo, entrevistou mulheres como a professora de inglês, Mila Rey, 53, que contesta a tirania da beleza: “Abdicar de uma aparência que se convencionou ser rejuvenescedora pode ser considerado até agressivo aos olhos de quem acha difícil lidar com os sinais do próprio envelhecimento”.

Ô, pacato cidadão! Não estaria na hora de conversarmos sobre velhice? Quanto aos meus branquinhos, alguém sentenciou: “Não é que você fique feia, mas é por você ficar velha”. Ãh?! Da amiga, coordenadora pedagógica da escola Olodum, a baiana Mara Felipe, 43, ouvi: “Feliz de quem está vivo para envelhecer. Eu me sinto linda, maravilhosa; eu estou, a cada dia, me sentindo melhor, mais feliz, mais realizada. O ano que vem será melhor ainda porque eu estarei mais velha, mais experiente e com mais vontade de viver... e de envelhecer”. (Adriane Lorenzon)

sábado, 10 de dezembro de 2011

Marcha pelas drogas







 (Arte: autoria desconhecida)

Amanhecemos o ano de 2011 com uma enxurrada de convites à drogadição. Foram tantos apelos! Um pouco de desconhecimento e defenderíamos também. Percebeu? Saca só. Em janeiro, soubemos da produção do documentário Quebrando o tabu, de Fernando Grostein, mostrando que a maconha precisa ser descriminalizada. Autoridades, como os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton (EUA), defendendo a legalização das drogas para poder barrar o consumo. Segundo o filme, a guerra contra os entorpecentes está perdida.
Programas jornalísticos nos apresentaram o óxi (feito de cal, substância de bateria, gasolina ou querosene) – mais forte e mais barato que o crack. Se este custa módica meia dezena de reais, o óxi sai pela metade do preço. A cal detona o sistema respiratório, enquanto o combustível afeta a região digestiva. Segundo a Polícia Federal, o óxi não é uma nova droga e, sim, uma variação da cocaína, surgida em 2005. Porém, a bomba da vez é o crocodilo. Criada na Rússia, a droga é composta de analgésicos, ácido e fósforo e apodrece a carne dos usuários. Segundo a revista Time, a expectativa de vida dos dependentes é de três anos.
Ainda ficamos sabendo da existência do cristal, tóxico poderoso que estoura os dentes dos usuários devido aos elementos corrosivos de sua fórmula. É chamado de cristal da morte; certamente, não por acaso. Conhecido por ice (gelo, em inglês), é 60 vezes mais forte que a cocaína. Pode ser fumado, cheirado, injetado ou tomado. Trata-se de uma meta-anfetamina que estimula o Sistema Nervoso Central causando euforia e potencializando o desejo sexual. Por isso é usado em festas, tipo raves, e durante o sexo. Leva o usuário a ficar dias sem comer ou dormir.

Por todo o país eclodiram passeatas de jovens defendendo a descriminalização da maconha. Como lhes faltou habilidade para se expressar e, desse modo, conquistar a opinião pública massivamente e com o devido discernimento em casos como esse, foram repreendidos pela Polícia Militar em diversos lugares. Até que conquistaram o direito na Justiça pela liberdade de expressão e puderam sair com cartazes, faixas, gritos de ordem ou desordem, como queiram, para dizer o que pensam em vários cantos do Brasil.
Sem o devido destaque na grande mídia, a indústria do tabaco manteve aditivos, aromatizantes, temperos e ervas que, cada um na sua função, potencializam os efeitos da nicotina e disfarçam o gosto horrível na boca. Açúcares são adicionados ao cigarro, aumentando doenças graves nos dependentes, como o câncer. Atualmente, a lenta e resistente Anvisa luta para que a propaganda explícita de cigarro não volte à cena. O governo não se posicionou firmemente e a indústria fumígena passou a determinar a velocidade da discussão. 

Durante dias acompanhamos pela televisão os desdobramentos de uma polêmica desnorteada (como todas são) e protagonizada por estudantes de uma das maiores e melhores universidades brasileiras: a USP. Alunos fumavam a erva marijuana no pátio da instituição quando a Polícia Militar interveio. Estudantes, “saudosistas” da luta contra a ditadura dos anos 1960/70, decidiram usar o ocorrido para barganhar outras questões com a reitoria. Foram falar de violência, por exemplo, utilizando-se de... Adivinha!? Violência...

Fechando o calendário, recebemos a notícia da morte do jogador Sócrates, autodeclarado dependente de álcool. Em setembro, numa de suas internações hospitalares, a mulher dele, Kátia Bagnarelli, disse ao jornal A Folha de São Paulo que iria incentivar o marido, quando recuperado, a iniciar uma campanha contra o alcoolismo para conscientizar as pessoas. “O arrependimento veio agora, me vendo sofrer e pelo sofrimento físico que ele está sentindo”, comentou. Não houve tempo para os projetos e o esclarecimento da sociedade.

Para o psiquiatra André Toríbio, “vivemos num mundo químico em paralelo ao crescimento econômico que nos acompanha como artifício de qualidade de vida”. Ou seja, desde cedo sabemos como alterar artificialmente a consciência para melhor digerir os reveses da vida. Mas quando vamos primar pelo discernimento, educação, reforma interior e, assim, espalhar em volta a prática de um mundo melhor? Se a Organização Mundial da Saúde constatou em estudo que a dependência química ocorre num processo de aprendizagem, por que não aprendemos também a edificar nossa construção muito mais do que nossa destruição? (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Cecília e os bichos presos


 (Foto: autoria desconhecida)

Um dos poemas mais lindos que conheço é Romance XXIV ou da Bandeira da Inconfidência de Cecília Meireles. Versos e mais versos preenchem o papel com o tema central da luta de um povo: liberdade. Mas não vou tratar aqui da história e das relações do Brasil, Minas ou Portugal. Quero apenas destacar um trecho do texto da musa lírica. “Liberdade, essa palavra que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”. Contudo, realmente entendemos de liberdade?

Passeando pelas ruas de Cachoeirinha (RS), sou invadida pela lembrança do Romance... que o recitei num espetáculo em Brasília, anos atrás. E a poesia é assim: ela gruda na gente e a gente nela – desde que a assimilemos em sua essência por meio da sensibilidade. Então, a narrativa de Cecília, naquele passeio, me envolveu enquanto via uma quantidade enorme de cães presos. Aliás, proporcionalmente falando, uma das cidades que visitei com mais cachorros perdidos nas ruas e presos em casa. Pode crer!

Meus passos eram seguidos por Cecília que me cutucava o tempo todo em súplica por liberdade. Pensei: que amar é esse que leva o homem a prender seu “bem-querer” entre latidos, abanar de rabo e uivos roucos de saudade? A mente se esforça para tal compreensão, mas o discernimento lhe escapa. O coração se derrama em choro por tamanha crueldade. Improvável um número elevado de casos com justificativas iguais de seus donos: “Prendemos um pouco, só por agora, até lavar a calçada”... e outras desculpas esfarrapadas.

Situações presenciadas ao longo da vida vêm à memória. Um cachorro que latia noite e dia em Tenente Portela, também no estado gaúcho. Era triste ouvir, de longe, aquela penúria. Nunca soube o desfecho. Conheço pessoas que mantêm seus “melhores amigos” em correntes de um metro de comprimento. Há peludos que caminham pra lá e pra cá durante horas, sem mais nada a fazer, tamanha é a redução do espaço de interação com a natureza. Sem falar, no inverno, presos à corrente e ao frio, sem poder buscar abrigo para agasalhar-se.

Em Florianópolis, uma ocorrência inusitada. Nunca a vida me mostrou tão bem o significado da palavra surreal. Quase tive um troço. Na ilha de Santa Catarina, manés carregam curiós em pequenas gaiolas pelas ruas. A ideia é passear ao sol com o avinhado. Em outra situação, por todo canto do mundo, há quem mantenha o peixe beta em minúsculo aquário para decorar a sala. Pessoas se presenteiam com o peixinho de longa cauda em sinal de amor. Ãh? Alguém justificará que o motivo para mantê-lo na estante – solitário e belo – é por ser briguento demais?

A bicharada dos zoológicos vive, amiúde, em recinto impróprio para suas necessidades. Pessoas prendem animais silvestres em casa para o bel-prazer de tê-los ali, ao alcance da mão. Um velho leão maltratado foi deixado em pequena jaula por um circo na beira de uma estrada no Brasil. Um bom samaritano passou e o levou para cuidá-lo e amá-lo. Tartaruguinhas são vendidas por pet shops para famílias mimarem crianças. Quando os quelônios crescem são deixados por aí. Por que os pais não fazem isso com seus filhinhos?

Traficantes enrolam e escondem nas roupas papagaios, pererecas, borboletas, vespas, besouros para “exportar” a colecionadores, mafiosos ou estudiosos. Também serpentes, jaguatiricas, macacos e tipos exóticos de nossa fauna vão-se embora. Qual a diferença da ação deles e a de pessoas que conhecemos que prendem animais e os maltratam por uma vida inteira? Nenhuma. Se o dinheiro “justificaria” o ato dos primeiros, o que argumentaria o segundo grupo?

Voltando à liberdade de Cecília. Que hábito funesto tem o ser humano de prender tudo o que vê pela frente? Que história é essa a de matar aos poucos os bichos com a tortura que abominamos para nós, ditos seres racionais? E se as pessoas sentissem na pele o que fazem aos bichos? Sempre que vejo um cachorro preso, caminhando pra lá e pra cá, me vem a imagem de seu dono, mesmo desconhecido, amarrado na curta corda do animal. Por que a restrição da liberdade é uma das penas mais dolorosas aplicadas nas sentenças judiciais humanas? (Adriane Lorenzon)