(Foto: autoria desconhecida, tulipas e amores-perfeitos)
Alguns dizem ser óbvia a distinção entre um lado e outro, o inferior e o superior, quando o assunto é a qualidade na música brasileira. Outros afirmam ser aspecto indissociável da subjetividade. Ou seja, qualidade para um, Tom Jobim, por exemplo, não é para outro que prefere Kelly Key, Calcinha Preta ou Parangolé. E os músicos, por sua ética, têm evitado discriminações e vão vivendo respeitando, com certo mal-estar evidente, o diferente de um naipe que exige sofisticação no paladar musical.
Durante o mestrado na Universidade de Brasília, meu orientador, parceiro daquela jornada, argumentou que falar de qualidade era algo muito subjetivo, por isso eu deveria tratar o tema com cuidado e ponderação. Ao apresentar meu primeiro anteprojeto de doutoramento, anos depois, ousei afirmar que qualidade se discutia, sim. Fui alertada pelos sábios doutores da academia: o assunto é item perigoso pois assalta os muros da diversidade. E dá-lhe prudência!
Desde então, eu ando com uma vontade louca de desafiar a mim mesma e escarafunchar essa história. E dá certo quando a qualidade é debatida no âmbito musical. Por isso, a ênfase nesse campo. Contudo, dá para analisar outras áreas. Na gastronomia faz sucesso o feijão com caldinho grosso, levemente temperado e não o aguado; no acabamento de uma confecção, costuras retinhas são apreciadas em vez de caminhos tortos; nas relações pessoais, é preferível companheiros a pessoas pela metade. E por aí vai.
Faz algum tempo que uso o termo qualidade superior ao enfatizar o assunto da competência, delicadeza, maestria na feitura de algo. E isso ocorre em qualquer área da vida. Um dia, apresentando um programa de MPB, o amigo João Cazali, programador do horário em questão, me ouviu dizer a dita expressão, qualificando o repertório escolhido por ele. Ao chegar à rádio foi direto ao estúdio dizer-me da alegria de saber do reconhecimento de seu trabalho. No set list figuravam nomes como Ednardo e Marcelo Delacroix.
Entretanto, dizer simplesmente que a produção de um músico é de baixa qualidade nos leva a pensar que há um padrão e que o inferior está longe do normal, do certo, do melhor, do correto, do adequado. Não é bem isso. Vamos refletir: quando esse artista escreve versos soltos sem poesia e prioriza o ritmo em detrimento da harmonia corre sérios riscos de fazer barulho sem graça e altamente incomodativo à vida alheia. Ouça a linearidade de uma banda como a Djavú. Nada muda, a batida é a mesma. Cansa e enjoa. Não há surpresa.
A arte, para ser tida como tal, deve nos tomar de assalto. Esta, sim! Envolver nossos sentimentos e pensamentos, conversar com o nosso interior, invadir nosso olhar, adentrar os ouvidos criando novos significados. E para perceber que algo incomoda, é necessário antes formar o gosto pelo belo. Isso não acontece de fora para dentro porque há um despertamento primeiro a auxiliar nessa construção. Porém, grupos musicais que usam termos como cachorra para definir a mulher e apelam para a lascívia até no nome como Garota Safada e Bagaceiros do Forró estariam trabalhando pela constituição desse apuro, desse requinte?
A humanidade vai se aperfeiçoando. Podemos ser simples no paladar, mas você há de concordar: os pratos crus de nossa época pré-histórica foram melhorados com o tempo, misturados ao tempero da cultura, da inventividade dos povos. Ficaram bem mais saborosos. Assim o é na música, literatura, artes visuais, cinema, teatro. É fácil perceber a grandiosidade de Laura Cardoso ou Paulo Autran. Do mesmo modo, é incipiente a qualidade na atuação de jovens atores, mas isso poderá melhorar. Todavia, alguns já nascem equalizados de fábrica ou superam suas limitações mais rapidamente.