sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Verbo esperançar

Gafanhoto conhecido como Esperança (foto: Joel Júnior)

Partidária do ditado “a esperança é a última que morre”, um dia fui surpreendida de forma retumbante ao ouvir de alguém que “a esperança não é a última que morre; ela não morre”. De imediato, aquilo foi um divisor de águas. Era uma lógica completamente diferente de entender a vida, de se portar frente aos obstáculos e dificuldades inerentes a um caminhar plural, autoeducativo, fora do padrão social, em tentativa constante de ser mais amoroso.

Nesse sentido, uma das frases prediletas de minha mãe, quando visitava doentes no único hospital da cidade em que vivia, era: “Coragem”! Certa vez, eu a acompanhei num desses “passeios” de encorajamento e fiquei contagiada pela força que saía de suas palavras simples e pelo olhar reanimado dos internados. Antes de morrer, disse-me estar preocupada com seus velhinhos e doentes, queria tanto não partir na grande viagem para continuar cuidando deles.

Tem alguma coisa que nos motiva e nos põe em ação, percebeu? O que é afinal que não nos deixa desistir? O que é que nos faz levantar da cama todos os dias e tomar um banho, um café e sair rumo a um trabalho, que nem sempre gostamos ou nos identificamos? Seria apenas o mísero ou supersalário que não paga a consciência tranquila, a paz de espírito, o bem estar no mundo? Quiçá, os sapos que muitos precisam engolir diariamente? Ou seria algo mais?

Sem a esperança em dias melhores, que alguns chamam de fé, não teríamos inventado engenhosidades que tornam a vida atual bem mais fácil: criar a roda, desbravar terras, revolucionar tecnologias, produzir vacinas e medicamentos. Em vários casos, não existiam dados, comprovações, certezas – apenas um quê impulsionando a humanidade a progredir. E os que ousaram ou se atrevem pensar em coisas impalpáveis são chamados de loucos.

Eduardo Galeano conta que um inexperiente médico foi chamado às pressas para ajudar no difícil parto de um menino. Ao chegar, viu que o pai havia tentado puxar a criança e o bracinho caía desfalecido. Pensou o socorrista que não tinha mais nada a fazer. Contudo, fez um carinho no pequeno braço. Ao tocar a mão do moleque, esta “se fechou e apertou seu dedo com força. Então o médico pediu que alguém fervesse água, e arregaçou as mangas da camisa”.

Para mim um desconhecido, Nelson Henderson nos estimula: “O verdadeiro significado da vida é plantar árvores, sob cujas sombras você não espera sentar”. Assim é a educação. A gente planta e semeia em todo tempo e lugar – um dia, quem sabe, o broto se faz verde. Já o poeta libanês Khalil Gibran arremata: “O entusiasmo é um vulcão em cuja cratera não cresce a relva da hesitação”. Dois caras que animam nossa empreitada de recriar a vida a cada amanhecer...

Lembro-me ainda de Mario Quintana: “Lá bem no alto do décimo segundo andar do ano mora uma louca chamada Esperança. E ela pensa que quando todas as sirenas, todas as buzinas, todos os reco-recos tocarem atira-se. E – ó delicioso voo! Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada, outra vez criança... E em torno dela indagará o povo: – Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes? E ela lhes dirá (É preciso dizer tudo de novo!). Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam: – O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA”... (Adriane Lorenzon) 

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Fim do mundo


Irmã Dulce, exemplo de vida (Foto: autoria desconhecida)

Para mim, o fim do mundo é mais embaixo, num buraquinho escondido, cheio de máscaras e disfarces: maledicência, desrespeito, arrogância, relações afetivas doentes, egoísmo, julgamentos, hipocrisia... Entretanto, já que o povo Maia resolveu fazer uns cálculos, que têm certo sentido, a gente acaba por parar um instante e se perguntar: seria mesmo o fim? Se sim, vai ser um baita susto para muita gente. Se não, tudo continuará como dantes. Será?

O que mais me instiga a refletir sobre o tema apocalíptico é imaginar que se fosse agora a minha partida, eu não teria feito praticamente nada em nome da humanidade. Está bem, em prol do outro, aqui do lado, já bastaria: um tanto de caridade, a mesa farta compartilhada, essas coisas que a gente imagina “conseguir” fazer quando ganhar a Megassena da Virada. Quase 200 milhões de reais me auxiliariam a desapegar, como se diz por aí, fácil, fácil...

Nascida em família pobre, materialmente falando, meu destino estaria desenhado: estudar até no máximo o ensino médio. E precisaria agradecer porque a cidade em que vivia dispunha do curso de magistério para garantir a brilhante carreira profissional feminina – e de alguns homens mais ousados. Mas eu fui além, pelo meu esforço, e muito antes, pelo incentivo de meus pais que sempre estimularam os filhos a estudar e buscar o aperfeiçoamento.

A propósito, eu mesma paguei dois cursos superiores e consegui uma vaga no mestrado de uma instituição pública. Só por isso, eu deveria devolver à sociedade um pouco daquilo que recebi, e procuro fazer, embora nunca seja suficiente. Estou sempre em dívida. Lembro-me de Chico Xavier reconhecendo que não havia realizado uma décima parte do que deveria fazer para ajudar a humanidade: melhorar o seu redor, a dor alheia, a fome do próximo.

Um incômodo enche os olhos ao se ouvir criaturas loucas de medo do fim do mundo. Tem gente que preparou um bunker para estocar água e comida e se proteger durante a possibilidade de três dias de escuridão e revolta da natureza. Imagino que quem viveu passeando e resmungando até agora, sem noção de que tudo é mais além, deva mesmo estar preocupado. “Viver é muito perigoso”, dizia Guimarães Rosa. Esse mineiro sabia das coisas...

Paulinho Moska canta: “O que você faria se só te restasse um dia”? Vai dizer que ia deixar de pagar as contas, beber até cair, empanturrar-se de guloseimas, copular irresponsavelmente, só porque o tempo de protelar mais uma vez estaria se findando? Nossa, você conseguiria ser assim tão previsível?! O mundo vai se acabar em algum momento, no âmbito da matéria, para todos nós. Deixe a ficção científica para os diretores e roteiristas de cinema; eles são ótimos nisso! Sugestão: pegue uma enxada e cuide de seu quintal! Há flores querendo desabrochar!

Desse modo, a partir de leituras e convicções, acredito que não será agora a derradeira incursão humana na bolinha azul do universo. Para mim, é muito mais assustador pensar que o meu fim chega todas as vezes que não consigo ser mais amorosa, paciente e compreensiva com meu próximo. Isso, sim, me mata, me aniquila! Ando com uma pressa urgentíssima de fazer algo mais, de oferecer daquilo que já recebi tanto, de ajudar a tornar, agora, o mundo um pouco mais alegre, leve, inclusivo, amoroso e interessante de se viver. Bora lá comigo? (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Estado laico


Quando juntos, Estado e religião fazem muito estrago (Arte: autoria desconhecida) 

Um assunto tomou conta das rodas de amigos, das salas de aula, do governo federal, de programas nos meios de comunicação: o Estado laico. Por conseguinte, justiça, educação, legislativo idem. Mas o que é laico? Trata-se de algo fora do âmbito religioso, ou seja, o Estado mantém-se neutro quanto a questões religiosas. Assim, por exemplo, educação laica é aquela que não defende uma religião apenas, mas todas e, ao mesmo tempo, nenhuma. A escola de seu filho promoveria uma educação sem dogmas e verdades absolutas.

Quando um grupo se incomoda com a expressão Deus Seja Louvado do papel-moeda brasileiro, essa classe defende um Estado laico. Para tanto, este não deveria se envolver com tais ideologias, já que, sendo uma espécie de grande pai, precisa respeitar todas as ideias de seus filhos, inclusive dos agnósticos e ateus. Diga-se de passagem, uma ponderação coerente e lógica, já que somos plurais. A propósito, Religião e Estado juntos? Revisite os livros de história...

Nesse contexto, as cruzes representativas do catolicismo instaladas nas salas em que a justiça e o direito transitam, estão fora de lugar. Torna-se também incongruente a obrigação de entoar musiquinhas e orações imposta às crianças em escolas públicas pela bandeira única do cristianismo erguida por professores desinformados – mesmo que a doutrina não represente a fé que os pais professam (a criança ainda vai demorar um pouco para fazer escolhas).

Recentemente, o Ministério Público Federal de São Paulo solicitou a exclusão da referida frase de nosso dinheiro. A Sétima Vara da Justiça negou o pedido com base na informação do Banco Central de que a simples retirada das três palavras custaria a bagatela de 12 milhões de reais aos cofres públicos. Além disso, a decisão judicial concluiu que “não se aferiu a existência de oposição aos dizeres inscritos nas cédulas no âmbito do seio social”.

Quanto aos gastos, é certo que os evitemos considerando que temos a educação e a saúde como prioridade de investimento. Para o procurador que requereu a ação, Jefferson Dias, basta que as notas sejam substituídas gradativamente. O parecer evidencia que “a alegação de afronta à liberdade religiosa não veio acompanhada de dados concretos, colhidos junto à sociedade, que denotassem um incômodo com a expressão ‘Deus’ no papel-moeda”.

Se a questão é essa, faz-se um projeto de consulta popular para saber a opinião dos brasileiros. Sem gastos, tudo bem. Com gastos, soy contra (corredores de hospitais clamam atenção!). Entretanto, o IBGE é suficientemente habilitado, competente e transparente para garantir lisura no levantamento estatístico – o que reduziria custos. Porém, pense um pouco. O Brasil, país de maioria crente, ou seja, que crê em Deus, responderia o quê?

Embora cristã, concordo com a tese de que o Estado deve ser laico, e, igualmente, o governo, a educação, a justiça, o legislativo... Contudo, o que está em jogo, a partir dessa breve celeuma, é que precisamos urgentemente melhorar a educação para que a grande massa bote para funcionar a massa encefálica da nação. Sem educação, vamos continuar desviando o foco para discussões tolas, sendo cristãos, ateus ou qualquer tendência filosófico-religiosa que tenhamos adotado. Pensemos, por favor! (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Cinco passos para transformar o mundo


(Arte: autoria desconhecida)

Às vezes, me perguntam: “Como, afinal, melhorar o mundo a partir de nosso estar no planetinha azul”? A resposta é simples. O complicado é acoplar a receitinha ao modus vivendi de cada um, pois quase ninguém quer agir nessa seara, tamanha a dor de cabeça que é sair do quentinho da preguiça. Contudo, com apenas duas mãos, vou morrer tentando aprimorar o mundo, nem que seja o meu interior. Daí o imperativo de um querer profundo.
 
Nesse sentido, a primeira coisa é observar-se, descobrir-se, criar um filme da sua vida até então, reconhecendo seu papel na família, no trabalho, nos círculos sociais. Qual é a sua onda, saca? Esta é a fase do autoconhecimento. Que leituras poderiam ajudá-lo nessa empreitada e o que o auxiliaria a desenvolver um olhar abrangente, menos endurecido frente à existência? O que você faria para aperfeiçoar o seu redor, a começar pelos recôncavos de si mesmo?

Ao me dar conta da necessidade de minha própria modificação, uma das providências foi reduzir os palavrões e usar vocabulário sem tanta grosseria. E isso acontece no dia a dia, não tem essa de inventar retiro espiritual para conseguir. Trata-se de uma decisão politicamente correta que não chateia, porém eleva a aura a sua volta. Por conseguinte, aos poucos, além das palavras, vão-se os pensamentos arcaicos desse homem velho que vive em mim.

Fácil perceber que a gente fica com uma vontade incontrolável de ocupar-se com temas nobres. É a mudança de atitude. Como, por exemplo, elogiar as pessoas, evitar apelidos constrangedores e gozações, passar a agradecer por tudo – até quando ajudamos, percebemos que fomos assistidos –, o desejo de impor nossa opinião diminui muito, já não fazemos questão de termos razão, e ainda que sofregamente, seguimos rumo a um viver pleno.

E o respeito? Ô palavrinha bonita. Não custa nada e ao mesmo tempo é artigo de luxo. Não julgar, deixar a hipocrisia de lado, optar pela gentileza (para virar hábito), reconhecer as potencialidades do outro, ser indulgente porque o amanhã nos mostrará o revés... Sem falar que as diferenças existem – chega de achar que a vastidão é só aquilo que nossa janela aponta. Há nuanças que nem desconfiamos existir, até o dia que nos atrevemos mirar além...

A quinta fórmula para desembolar o emaranhado que trançamos o mundo é o óbvio. Não se lembra, caro leitor? Trata-se da chave dourada para todas as fechaduras enferrujadas. Para ele os caminhos se abrem. O amor. O amor se traveste de várias maneiras: um abraço, um sorriso, uma conversa demorada com o desconhecido carente de atenção, um cliente que você atende como se a presença dele, ali, fosse alterar substancialmente a sua vida. Experimente!

É claro que falando assim parece fácil, simples e rápido. Parece, não. É. Ocorre que os humanos preferem dar uma embromadinha. A propósito, eu poderia elencar outros 500 passos para refinar o mundo. Mas se conseguíssemos realizar o que Teresa de Calcutá nos ensinou, já estaria de bom tamanho. “Não devemos permitir que alguém saia da nossa presença sem se sentir melhor e mais feliz”. Ah, moleque, vai fundo! (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Dona Morte

A persistência da memória (Salvador Dalí)


Um dia abri os olhos e me dei conta que estava viva, que só a vida importava, como se a fonte fosse inesgotável. O Ocidente em que vivia (e vivo) estimulava curtir a vida “adoidado”... Mas quase nunca tratava do seu contrário, a dona Morte; aquela que quando chega não é esperada, embora saibamos que baterá à porta, impreterivelmente. Adjetivada, tal senhorinha tornou-se a foice, a miudinha, a caveira, algo sem assertividade nenhuma.

Daí fiz uma conexão direta desse modo de compreender a existência com a forma de usar os recursos naturais pela humanidade: excessiva, abusada, desrespeitosa, egoísta. É como se a natureza tivesse sempre um tanto de água, de minério, de madeira a ofertar – pródiga em sua generosidade, coitada! Como se fosse obrigada a servir certo bípede, pretenso topo da cadeia, inteligência rara, animal diferenciado, poderoso chefão, com um pouco mais de... vida.

Depois de os olhos, além de abertos, se arregalarem, realizei outras ligações e fui pesquisar essa confusão toda. Sim, porque vira uma grande celeuma na minha e nas demais cabecinhas tontas de pensar. Observei que não estudamos a morte, não lemos nem refletimos sobre a morte e, portanto, não entendemos o desapego e toda a dimensão vária que a falta ocupa nos corações quando da “partida” de um amado nosso. Como dirigir a vida, então?

Ah, é, a sociedade até aborda a morte. No Dia de Finados somos lembrados a homenagear essa galera toda que já se foi. Telejornais informam a venda de dúzias e dúzias de crisântemos e que familiares lotarão os cemitérios... Todo ano é a mesma coisa. Repórteres, ainda se quisessem, não conseguiriam ser criativos porque o pauteiro/chefe de reportagem não deixa – a morte, em sentido mais abrangente, não deve mesmo subir à tona do agendamento do dia.

Para alguns, a morte não é oposto; é, sim, sinônimo de vida porque continua em outro plano. O corpo morre e a alma se liberta, prosseguindo a viagem. Para outros, vida e morte formam um todo, se completam. E para outros tantos, é o momento de iniciar o período de penas ou regozijos eternos. Contudo, independentemente do credo, a morte “é”. E isso, talvez, é o que a faz tão poderosa e contundente. Diferentemente da vida, que “pode ser”.

No final das contas, por que não falar de morte, fugindo do crucial instante que nossa jornada impõe? A todos, diga-se de passagem. Um dia vamos parar em outro lugar, sumir da matéria, do mapa. Antes disso, de modo geral, teremos enterrado (cremado e outras formas de “guardar” o corpo) criaturinhas amadas. Agora, se não nos desprendemos nem de uma camisa velha do armário, como desapegar de alguém que amamos profundamente?

“A morte é a libertação total”, escreveu Mario Quintana. E com muito bom humor, o velhinho do hotel Majestic concluía que “é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos”. Nesse sentido, Erasmo Ruiz, um cara que conheci lendo um texto da Internet, diz que “a poesia é um dos poucos redutos onde podemos aprender um pouco da arte de morrer”. Assim, que nossa lucidez invada essas zonas perigosas – e libertadoras – para apreendermos a morte e, junto a ela, a intensidade da vida. Morte e vida, vida e morte, uma relação indissociável. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Raça humana

(Arte: autoria desconhecida)

Um dia precisamos ser lembrados que existe algo mais do que nosso olhar consegue avistar à frente ou de que nosso pobre umbigo pretende saber. Por isso são estabelecidas datas em homenagem a temas complexos como a Consciência Negra, em 20 de novembro, no Brasil. Medida altamente positiva que nos mostra uma parte da gigantesca pluralidade dos grupos sociais que compõem o mundo. Mas até quando precisaremos lançar mão disso?


Pelo que li na área de antropologia – ciência que estuda o homem, na categoria de bípedes pensantes não existe outra espécie que não a humana. Pelo menos, por enquanto. Nesse sentido, a expressão raça negra é a maior bobajada, sem nenhum fundamento. Contudo, o que temos são etnias; aliás, múltiplas – conceito plural e distinto do simplismo que se tenta reduzir o entendimento de humanidade. A raça é humana, não importa a cor da pele.  

Em 2010, no Censo do IBGE, fiquei tentada a me definir como amarela. Minha ascendência genealógica passa pela Itália, Áustria, Espanha, Uruguai, Brasil (caboclos e índios), Portugal, França, e as Arábias... ôps... acabei caindo na África. Eu sabia que tinha um pezinho lá! Muitos antropólogos afirmam que todos descendemos de um único ancestral africano. E a minha palidez? É que a coloração original é mais para a gema do que para a alvura, o sangue ou a noite. Então não seria asiática, logo ali pertinho? A princípio, não. Mas quem dirá o contrário?

Já ao ser indagado sobre o que achava do mês da consciência negra, o ator estadunidense Morgan Freeman, concluiu em entrevista ao 60 Minutes da tevê dos EUA: “Ridículo”. Por quê, pergunta Mike Wallace. “Você vai confinar toda a minha história em um único mês”? E o apresentador: “E como vamos nos livrar do racismo”? Resposta: “Parando de falar sobre isso. Eu vou parar de chamá-lo de branco e o que lhe peço é que pare de me chamar de negro”.

Observe no dia a dia. Ao explicarmos a alguém quem é certa pessoa, personagem de um fato, falamos: “É aquele coxo, zarolho, moreninho, sarará, deficiente”... Ou ainda, partimos para o lado do ter e do glamour: “É o cara do novo Focus, a namorada do promotor, o filho do prefeito”. Tal metodologia de vida é a mesma em obtusidades e preconceitos que a anterior. Dessa forma, julga-se pela aparência, incentivando a falta de foco e amplitude na visão. Sacou?

Sem querer igualar animais racionais a irracionais – apesar de estes, muitas vezes, serem superiores, asnos, por exemplo, também têm suas particularidades. Não deixam de ser da grande família equus a que pertencem porque misturam seus asinus aos caballus. Burros, jegues, mulas, jumentos, bestas, marronzinhos ou cinzentinhos, continuam sendo muares. Isso prova que as diferenças que os destacam é o charme da coisa. No caso humano, é o que nos engrandece. Embora, para alguns, isso, sim, é que é asneira; desculpando o trocadilho...

Para a blogueira Larissa Carvalho, “o resultado do último Censo revela (...) a consciência da valorização da própria identidade entre os afro-brasileiros”. A maioria se considera negra ou parda. Todavia, os números mostram que estamos criando uma consciência integral, que extrapola a quantidade de melanina visível na epiderme. Trata-se do sentir-se humano. Em Alma não tem cor, o músico paulistano André Abujamra diz: “Percebam que a alma não tem cor, ela é colorida, ela é multicolor”. Bem isso! (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Falsas alegrias

(Foto: autoria desconhecida)

Duas meninas, de um ano e seis meses e um ano e dez meses, se encontraram e foram se aproximando, titubeantes, como é o caminhar dessa idade. Meus olhos flagravam o inusitado. Todos aguardavam a possibilidade de confronto – crianças brigam, puxam cabelo... Contudo, o que presenciamos foi um gesto de amor. Uma delas parou, fitando a outra se achegar. Esta alcançou o rosto da nova amiga e o acariciou com a delicadeza típica da pureza.

O filme (poderia sê-lo, mas era realidade) estava rodando quando um grito, três mesas à frente, interrompeu a tomada. A mocinha em ação parou, olhou em direção ao som com a calma dos sábios, aguardou o pseudossilêncio, e prosseguiu na eternidade e ternura do gesto. Novo grito, nova parada, novo recomeço. Depois, tudo de novo de novo. Até que as pequenas professoras envolvidas com a possibilidade de comer um salgadinho saíram de cena. Corta.

Numa dessas circunstâncias da vida, reencontrei uma amiga que não via há dez anos. Ela sugeriu um bar para irmos e não vi problema nenhum – não era eu que conhecia a cidade e o reencontro em si era o mais importante. Ao chegarmos, vi um telão ao fundo e uma tevê gigante na entrada em alto volume. A bola rolava numa disputa de título. O ruído atrapalharia qualquer intento de relaxamento e interação. Pensei: “Será que vamos conseguir conversar”?

Perto da gente, um rapaz, de costas para mim, gritava enlouquecidamente a cada gol ou possibilidade de balançar de rede. Os urros eram altos e prolongados. No apito final, bateu na mesa, gesticulou com o punho fechado para o alto, e se eu olhasse de perto, babava, extravasando sentimento raivoso. Na mesa, tentávamos dialogar. Assim como o gesto das crianças fora interrompido, paramos também. Corta.

O momento, para mim, era singular – não frequento esses espaços. Então, sem resistir à ironia, perguntei ao irmão da minha amiga: “Quanto o Fluminense está pagando para o cara torcer assim”? Também apaixonado, porém controlado, disse que fazia quatro anos que o Clube não ganhava uma premiação dessas. Eufórica (o ambiente estimulava isso), ouvi 34 anos. Aí entendi, aceitei por um segundo, mas fui corrigida: “Não, é quatro anos”. E eu: “Ah”...

Além do mais, o gritão vinha acompanhado da namorada/esposa. Lá no fundo, a feminista que mora em mim, perguntava-se: “Que mulher é essa que se sujeita a isso ou, pior, que gosta disso”? Entenda, caro leitor. Mesmo que algumas ainda passeiem meio tontas, nós mulheres viemos equalizadas de fábrica, ligadas a sentimentos nobres, pois temos, de modo geral, a missão de elevar a frequência vibracional do mundo: famílias, relacionamentos, empresas...

Conclusão mais do que óbvia: sinto uma megadificuldade de me situar numa sociedade que valoriza abusos. Não me refiro aos grandes dramas humanos como a miséria e a guerra. Falo daquilo que aos olhos da maioria é bonitinho, engraçado, e, portanto, aceitável: excessos no carnaval, futebol fanático, músicas incentivadoras de vidinhas mais ou menos. Por fim, acabo sendo, eu, a desajustada, digna de reconhecer a velha máxima: “Os incomodados que se retirem”. Entretanto, da grande viagem da existência, não dá para desembarcar. Mas do bar, bem que eu respirei aliviada quando minha amiga nos convidou: “Vamos”? (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A vida aos 40


Adriane Lorenzon falando do livro PODER LOCAL NO AR no Prosa em Sintonia da Embrapa - Jaboatão dos Gauararapes - PE 
(foto: Marcos La Falce )

A casa dos enta é minha morada há um ano. Com condições propícias, chegarei aos ento como Niemeyer, mas isso seria lucro. Para uns, o início da vida é aos 40 anos. O que faz sentido para quem passeava nos desacertos, desequilíbrios, controles e escolhas equivocadas. O que é, para as pessoas em geral, o período antes dos 40? Vazio? De toda forma, as quatro décadas são um dos momentos mais importantes desta autora – simplesmente porque acontece no agora.

Para a jornalista Eliane Brum, a sociedade entende que a vida começa aos 40 porque acha que a vida da mulher só então desabrocha – por estarmos ainda “bonitas”, termos a carreira consolidada, os filhos voando... Já os homens, mais crescidinhos, penso, sem tanta ansiedade no ato sexual melhoram o desempenho, ou porque conseguem bancar as contas da família que, claro, surgiu como um caminho único de felicidade, passando, finalmente, a viver.

Comigo a vida começou lá pelos 23, ao dar-me conta de algumas perguntas que nunca suspeitara delas. Não sei se elas sempre estiveram ali. O fato é que apareceram e me botaram para refletir. Em tempo passado, houve vida também; meio torta, diga-se de passagem. Caetano Veloso, no álbum Cinema transcendental (1979) vai fundo no abismo humano: “Existirmos: a que será que se destina? (...) Apenas a matéria vida era tão fina”.

Tudo o que consegui concluir não era senão a impermanência, porque logo ali, aos 28, nova fase se instalou. Para os taoístas, dizia uma amiga, é nessa idade que a gente sai, por fim, da adolescência. Não pesquisei se é isso mesmo, mas fez um sentido danado porque me vi amadurecendo, como a fruta pronta para ser apreciada intensamente. E não falo de sexo, embora Balzac reverenciasse as trintonas, pois o amor poderia ser vivido com plenitude.

Aos 36, passei por aulas com professores incríveis. Primeiro, com minha mãe. Aprendi tanto, tão profundamente, que pensei não haver mais espaço em mim. A cada nova lição, aumentava de tamanho. Não engordei tanto nos pneuzinhos localizados, porém ampliei espaços imensuráveis a olho nu. Acabei habilitando-me para a pós-graduação que inauguraria aos 40. Se é acaso para você ou porque a vida se inicia, sim, aos 40, pouco importa.

O lance é que depois que a gente cresce, não dá para encolher ou desfazer o conhecido. E quando a gente fica grande, torna-se responsável demais por todo esse conhecimento. Quando eu era pequena, minha mãe, sábia, ao analisar uma situação conflituosa entre os filhos, dizia: “Se o pequeno não entende, o grande tem que procurar entender”. Reservadas as devidas particularidades, tal orientação é indicação salutar de dirimir quaisquer pendengas.

Vou contar-lhe uma história. Diz-se que um homem veio ao mundo para viver 80 anos, 40 deles na miséria e a outra metade na riqueza. Ele poderia optar antes de nascer se preferia uma ou outra condição social primeiro. Não teve dúvida, mandou ver na alternativa dos fartos bens. Eu e você, como faríamos? O lance é que o cara escolheu, depois de matutar, a riqueza; multiplicou-a, administrou-a, dividiu-a e, com isso, viveu a vida octogenária na abundância. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Bial e o muro de Berlim


O muro de Berlim foi derrubado em 9/11/1989 (Foto: Ulda Zoca de Grava)

Interpelando o tempo, observo que faz alguns milênios que as pessoas se entretêm iludidas com julgamentos e suposições acerca do outro. E este é, quase sempre, o desviado do padrão, o diferente, o abusado – ao turvo mirar do olhador. Então, ao me reportar à era atual, vejo que nessa diversão há um deslumbramento com aquilo que a aparência e a hipocrisia nos mostram ou escondem como verdade, entendimento de vida, modelo a ser seguido ou combatido...

Vamos por partes. Uma pergunta incomoda muita gente, em especial, jornalistas. Por que Pedro Bial, repórter de eventos históricos como a queda do muro de Berlim, em 1989, escolhe a ocupação de apresentador de um programa de baixo nível educativo-cultural como o BBB? Ou ainda, disse alguém em contexto distinto, por que achar que Daniel, o cantor sertanejo, não teria atributos para avaliar um músico de MPB em recente produção global?

Para mim, o buraco é bem mais embaixo. Por que pressupor que o referido jornalista seria modelo de criticidade e coerência? De onde vem a necessidade de julgar com desconhecimento e preguiça de refletir sobre criaturas que nos são apresentadas a distância? Por que inferir que fulano deveria ser elitizado e refinado intelectualmente? Ou que beltrano não é capaz, não é habilitado, não é suficientemente nobre para exames musicais plurais?

Sempre digo aos meus alunos: “Antes de estarmos jornalistas, somos humanos”. Isso ocorre em qualquer área, é óbvio. E é essa condição que nos permite “falhar”. Somos incompletos, impermanentes, suscetíveis, e, em especial, falíveis. Ufa, que alívio! Se fôssemos magistrais, nossa onda seria outra. Todavia, se só raros fossem certinhos, como eu ou você, seria uma cobrança geral, jamais poderíamos pisar na bola e aprender novas lições.

Observemos a área política. Quando a “esquerda” subiu ao governo no Brasil, pressupunha-se que não haveria falcatruas. Claro, há séculos só a “direita” roubava, corrompia, enganava, mas a “esquerda”, jamais, até porque ela se intitulava ilesa das seduções gananciosas. Agora sabemos que tais siglas contêm um elemento comum: a humanidade. E, portanto, qualquer partido, sem exceção, pode sofrer as tentações da matéria, do poder, do dinheiro...

Errado pensar, também, que se o cara é padre não estará sujeito ao chamariz da carne. Daí os inúmeros casos de homossexualidade enrustida, pedofilia, e daqueles que abandonam a batina porque resolveram se casar, com mulheres, claro. É equivocado, igualmente, achar que o espírita é perfeito porque a doutrina sugere o melhoramento interior do ser. Entenda. Antes de qualquer bandeira levantada, somos todos pequenos bípedes rastejando para amadurecer a mente, os sentimentos, as atitudes, a alma. Um cisco, dizia Chico Xavier de si mesmo.

Embora procure compreender, fico indignada com essa forma de encaminhar a vida, escolhida por grande parte dos indivíduos. Deduzir sem conhecimento de causa, sem saber aonde a criatura andou para se construir assim, pressupor que o outro é só defeito e nada de virtude, é jornada perdida, dor garantida, revide certeiro. Não quer dizer que não se carregue ideologias e algum ônus por empunhar pendões polêmicos. Bial tem qualidades, mas não está livre de limitações nem sabemos onde aperta seu sapato. Daniel, idem. E nós – eu e você? (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O gari, o lixeiro e o urubu

Urubu-de-cabeça-preta (Foto: autoria desconhecida)

Um ser que considero pra caramba é o urubu – ave reconhecida como de mau agouro, fedorenta e que fica só procurando e sobrevoando carniça. Tadinho. Para mim, ele desempenha um ofício superimportante na natureza e, por que não dizer, na sociedade humana – a ecologia é una mesmo. Afinal, esse agente com capa preta e tudo, limpa o ambiente de animais em decomposição. De outra forma, teríamos de assumir a empreitada.

Nesse sentido, ainda adolescente, perguntei a um professor qual a importância da lesma. Eu tinha nojo do molengo molusco. Sábio, respondeu-me que todos na natureza têm um préstimo e com a lesma não seria diferente, pois ajuda no equilíbrio ambiental evitando, por exemplo, proliferação de insetos e servindo de guloseima na cadeia alimentar. Aprendida a lição, passei a ver os bichos com outros olhos e viver de maneira mais harmônica com a grande Mãe.

O urubu é sério e introspectivo, e não é corvo. Memorize isso de uma vez. Retraído, só é sociável com o próprio grupo. Carne num trecho da estrada, e logo disputa um pedaço com o S. Gavião. Geralmente, um come o fresco; outro, o podre. Morto um cavalo no campo, a quilômetros de altura vê-se um círculo adivinhando que o alimento será farto em breve. A equipe não brinca em serviço – possui um rastreador olfativo de primeira linha.

Observando esses auxiliares de limpeza, aprendi a admirar dois tipos de trabalhadores que sofrem altos preconceitos: garis e lixeiros. Essas figuras, em vários horários, até quando estamos dormindo, trabalham para a gente. Sabia disso? Você, aposto, não se lembra de pagar seus salários; entretanto, trabalham por e para você todo santo dia. E deixam tudo limpinho para que a cidade acorde mais bonita, organizada e cheirosa.

Gari, lixeiro e urubu têm funções parecidas. Todavia, este age por instinto, enquanto aqueles, por necessidade. A vaga dos primeiros existe e tem quem precise do emprego. Os ordenados são pequenos, a insalubridade é constante, e a responsabilidade enorme. Sem falar na invisibilidade social com que são (des)tratados. A remuneração deveria ser uma das mais elevadas, tamanha a nobreza da atividade. Mas se nem professor ganha bem...

Empresas e entidades sociais descobriram que lixo dá dinheiro. Não, não há notas perdidas na lixaiada. Reciclar lixo no Brasil proporciona dividendos inestimados pouco tempo atrás. Hoje, pequenas, médias ou grandes firmas de reciclagem geram emprego e renda. É só botar a mão no estragado, no malcheiroso, naquilo que é a nossa podridão. Se fosse devidamente tratado, o lixo domiciliar brasileiro renderia cerca de 10 bilhões de dólares em lucro. Vai encarar?

Por tudo isso, precisamos nos reeducar. Garis deveriam ser mais bem valorizados e, finalmente, respeitados. Assim como todos gostamos de ser tratados. Talvez, então, urubus seriam vistos em estatuetas na decoração das casas. Isso para quem acredita em superstições (que não é o meu caso). Ao contrário do sinônimo de azar que ignorantes criaturas teimam em maldizê-los. Fique certo, caro leitor. Cada um na sua, gari, lixeiro e urubu são abnegados servidores da humanidade e aqui presto meu singelo agradecimento e reverência. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A quase queridinha


(Arte: autoria desconhecida)

Equivocada, ao me iniciar no magistério do ensino superior, imaginava dar as melhores aulas num espaço de diálogo e respeito, aperfeiçoar-me sempre, ser amiga dos alunos, e como consequência direta, ocorreria uma espécie de conformidade de opiniões; reconhecida, pelo menos, como uma boa professora. Afinal, quem não gostaria de ter um mestre dito cabeça aberta, democrático, responsável? Arrá! Caí do cavalo direitinho, sem dó nem piedade!

Nelson Rodrigues, o famoso jornalista dramaturgo, afirmava que “toda unanimidade é burra”. Entretanto, ingenuamente, sonhei com ela. Bastou pisar na sala de uma turma de graduação como docente para quebrar a cara. E a janela estilhaçou com pedras jogadas justamente por aqueles que reconheceriam com o tempo que eu tinha algo mais a lhes dizer, compartilhar minha experiência e ouvir a deles e aprender com eles. Um caminho cheio de descobertas.

No primeiro dia letivo comigo... Incrível, havia aula! Para desgosto dos que esticavam as férias por mais duas semanas e depois chegavam reclamando. Pensava: como exigir pontualidade e participação sem lhes oferecer isso? Senão, de que forma explicar conteúdos como o famoso deadline jornalístico, ou seja, o prazo apertado que temos na profissão? Acaso a reportagem escrita por eles no futuro não seria publicada por conta de um atraso ou deslize?

Tive aluno amoroso, amigo, prestativo, preguiçoso, mentiroso, dramático, galanteador, falso. Porém, os piores eram os resmunguentos. O teste de paciência era diário. Em tempos de faculdades em cada esquina, professor é um contratado do corpo discente. Resignada, pensava: “Afinal, são crianças grandes sob a minha tutela”. Hoje, Henry Adams me acalma: “O professor se liga à eternidade. Ele nunca sabe quando cessa a sua influência”.

Por mais que buscasse coerência e afinação com uma prática pedagógica libertária e dialógica, isso não bastava. Muitos só faltavam pedir notas sem entrega de trabalhos e simpósios presenciais sem a presença deles. Então, eu clamava perseverança. Assim como os alcóolicos, repetia: “Só por hoje”. Mas esse grupo era a exceção, outros tantos mereciam meu empenho. Pelos desavisados, recitava o mantra e esperava o eclodir da semente plantada.

Histórias como essas me ajuda(m)ram a trabalhar a vaidade e o egoísmo e me tornar uma pessoa melhor. Contudo, uma coisa que me deixa feliz é ouvir de um ex-aluno, atuando no campo de trabalho, que se tivesse prestado mais atenção às minhas aulas, saberia como contornar as dificuldades profissionais. Na hora, caro leitor, creia, não penso: “Bem feito”! Apenas agradeço por finalmente a ficha cair e o beltraninho se aperceber no mundo.

Esse indivíduo precisará forjar novos referenciais, leituras, modelos, estudos para aprender o que eu procurava estimular ao longo do curso e, seus colegas, talvez, por estarem em momento propício, captassem com mais assertividade. Porque a educação não acontece quando o professor quer, mas quando diversos fatores se conectam no ambiente do aprendizado ligando educador, educando e tudo mais em volta. Educar é via de mão dupla; ambas as pistas precisam estar abertas ao tráfego e troca de ideias, perspectivas e impressões. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Lembra de mim


(Arte: autoria desconhecida)

Às vezes, rio de tanto mico que pago nesse mundão. Um deles refere-se ao fato de eu me lembrar das pessoas e as mesmas nem imaginarem quem seja a dona à sua frente. Em outras, elas se lembram de mim e eu quase morro de vergonha quando a figura me chama com a maior intimidade: “Dri, como vai o pessoal, o projeto, cê tá ainda lá”? Então, fico vermelhaça – nenhum batalhão de incêndio consegue abafar o caso.

Aos 18 anos, conheci um rapaz que se encantou pela moçoila aqui. Pedida em namoro, disse-lhe que não via possibilidade na empreitada pois o tinha como amigo. Anos depois, enquanto procurava conhecidos que sumiram por aí, consegui o telefone dele. Sem pestanejar, liguei para dar um oi e falar dos rumos da vida. Ao dizer meu nome, perguntei: “Lembra de mim, Gilberto”? E ele: “Não, nem imagino quem seja”. Toma!

Bem menos tempo atrás, outro me cumprimentou: “Adri, oi”! Meu Deus, eu queria que o chão se abrisse. Sem reconhecê-lo, fiquei tentando adivinhar até que caiu a ficha. Ele estava diferente e usava boné. O Paulo Sérgio era um dos coleguinhas de escola, junto com o Felipe José e o meu primo Paulinho, que era fera em matemática. Para mim, Paulo Sérgio era “o máximo” por dominar o idioma da incógnita.

Certa feita, nos corredores da Câmara dos Deputados ouvi: “Oi, Dri, tudo bem”? Sem ter a mínima ideia de quem era a carinha feliz: “Oi, tudo bem, e você”? E a linda morena, sacando que eu nem tchuns: “Você não está me reconhecendo, né”? Porém, na maior sem-cerimônia lasquei: “Você foi minha aluna”? O esquecimento virou um elogio. A ex-colega mandara para o espaço 40 quilos e estava elegantérrima.

Nessa época, o deputado Orlando Desconsi (RS) assumira uma vaga na casa de todos os brasileiros. Fiquei feliz por ele e a nova condição de legislador. Estava cobrindo o plenário e o vi de longe. Desconsi fora um ativo colega de movimento estudantil. A seguir, ao encontrá-lo nas vielas do Anexo Quatro, disse: “Oi, Orlando, lembra de mim? Atuamos juntos no DCE, em 1995, na Unijuí”. Ele: “Não, não me lembro”. Toin!

Atores, músicos, políticos e pessoas mais expostas publicamente ouvem muitas gracinhas de fãs perguntando se eles se lembram da(o) beltrana(o). Capaz, bem capaz! Há ainda quem não se lembre de mentirinha, ou seja, faz de conta para não se comprometer ou se envolver. Isso é outra história. E os que não querem saber do passado? Aliás, tem de tudo no mundo, até quem minta para se livrar de você.

Se a criatura recordar, vai manifestar de algum jeito. Perguntar para quê? Só se for para correr o risco de um sonoro não. É que a memória é um dispositivo incrível que oferece inestimáveis serviços para nos tirar de enrascadas. Entretanto, ela trai com a mesma facilidade do contrário, e nos derruba feito fruta madura do pé. O orador romano Cícero já alertava: “A memória diminui se não for exercitada”. É ou não é? (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Na hora H


(Foto: autoria desconhecida)

Gosto de observar o modo de reação de cada um em momentos que exigem uma tomada de decisão urgente e precisa. A mudança do programa de viagem, a alteração do cardápio, a compreensão generosa por algo fugir do anteriormente combinado. Com certa facilidade, nessas ocasiões, minha velocidade se aproxima da presteza que o ocorrido pede. Mas afinal, qual é a origem da dificuldade de se situar no contexto surgido de supetão?

Se alguém desmaiar por perto, como você procede? Grita, chora, se escabela, ou faz alguma coisa útil? Busca socorro? Presta a primeira assistência? Tenta evitar tumulto e mais sufoco para o acidentado, afastando os curiosos com firmeza e galhardia? E num grave acidente com sangue, choro, vítima fatal, vai lá só de curioso ou para auxiliar? Se o resgate já chegou, permanece no local para atrapalhar e depois espalhar para sua rede os detalhes da cena?

Os jornalistas que produzem telejornais diários organizam tudo antecipadamente para cada edição. Certo dia um fato muda o traçado do roteiro e o diretor precisa decidir na hora, sem muito tempo para refletir, qual matéria derrubar, ou seja, uma reportagem ficará de fora porque o acontecimento está se impondo na pauta: um incêndio, um desastre aéreo, a morte de artista famoso ou de político conhecido, uma denúncia – trata-se do extraordinário.

Em 2005, eu e Laura decidimos botar o pé na estrada, rumo a Pirenópolis (GO), à noite, para curtir um feriadão com outros amigos. Sabia que corríamos os riscos inerentes ao viajar noturno. No meio do caminho, a conhecida rodovia cheia de buracos provocou uma fissura no pneu do carro e tivemos de pedir ajuda para o primeiro que decidisse parar. Fiz uma oração. Ato contínuo, um soldado do Corpo de Bombeiros do DF nos auxiliava valorosamente.

Dizem que conheceremos verdadeiramente uma pessoa quando viajarmos com ela. Deslocar-se com quem não aceite revisões no roteiro da jornada, desde a escolha do restaurante a aspectos imprevisíveis da estrada, indica problemas à vista. Pode saber que essa criatura será de difícil convivência, pois a vida é impermanente – e a tal figura não entendeu. O tempo todo a existência nos provoca a autotransformação para encararmos os inevitáveis reveses.

Imagine um navegante, conhecedor dos ventos de sua rota, ao perceber um movimento estranho no ar, resista no ajuste da vela. No século 19, meus antepassados viajavam da Itália para o Brasil. A embarcação sofreu um abatimento, alterou a rota, e levou-os de volta ao solo italiano. Próximos da costa natal, o comandante conseguiu corrigir a direção. Ainda bem que havia combustível suficiente a bordo, para a máquina e as inúmeras bocas.

Em contradita, tem gente que muda de opinião o tempo todo, como na música Sereníssima da Legião Urbana: “Tínhamos a ideia, mas você mudou os planos, tínhamos um plano, você mudou de ideia”. Existirá um meio termo entre maleabilidade e firmeza, certo? Conheço indivíduos que quase nunca precisam tomar decisão; há sempre alguém agindo por eles. Porém, um dia a casa cai e será preciso decidir, escolher, assumir riscos e responsabilidades. Só assim a humanidade evolui. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Tudo de novo

Detalhe da urna eletrônica brasileira (Foto: autoria desconhecida)

Conhece um candidato que já demostrou incompetência, não consegue propor um projeto decente, e compra voto que é uma loucura? Ou o que “rouba mas faz”, e como autoridades têm o rabo preso ou fazem vistas grossas, continua se reelegendo? Ou o fulaninho que promete, promete... Seriam eleitos ou reeleitos por algum mágico que confirma nas urnas os votos necessários para tal intento? Ou os eleitores, ditos cidadãos, têm algo a ver com isso?

Claro que selecionar novatos não significa um maior ou menor percentual de honestos comprometidos com o fazer público. Nesse sentido, a lei da Ficha Limpa foi criada, justamente, para melhorar o perfil dos candidatos a cargos políticos no Brasil: quem tem “culpa no cartório” fica impedido de candidatar-se. Porém, a bola que levanto aqui, caro leitor, é quanto à postura, à conduta de cada um nos processos que somos convocados a participar.

Uma década atrás, confabulava com meus botões sobre votar nos “menos piores”. Perguntava aos amigos o que fariam naquelas eleições, pois não havia “o” nome para elegermos. A resposta era o silêncio ou a máxima: “É assim mesmo. Fazer o quê”? Meu irmão, mais avançadinho na prática da rebeldia, afirmava preferir o voto nulo a escolher, por imposição, o “menos pior”. Conscientemente, anulei meu voto pela primeira vez, e não doeu nada.

Embora tenha sido necessária, a obrigatoriedade do voto é um constrangimento para a democracia. Num voo a Cuiabá, um juiz, ao meu lado, dizia: “Somos obrigados a votar, não a escolher”. A desculpa para mantê-la, afirmando-se que ninguém mais iria votar, é pequena demais. Ao contrário, milhões de pessoas adoram política e votarão até o fim dos seus dias, por pior que seja a lista de candidatos. Todavia, facultar o voto deverá estar associado a significativos investimentos em políticas públicas; principalmente, na área de educação.

Se valorizamos a democracia, por certo a publicidade eleitoral deveria nos ensinar acerca de todos os tipos de voto, inclusive o nulo. O problema é que a “dita dura”, tão doída em nosso país, fica rondando e servindo como justificativa ad aeternum para formadores de opinião não debaterem temas complexos como o exercício da escolha. Então, se for o caso, digite um número fictício. A seguir, a tela informará repetidamente que você precisa corrigi-lo. Aperte a tecla verde de uma vez. Entretanto, saliento, essa é UMA opção, não a única.

Com a urna eletrônica, foi-se o tempo de votar no Macaco Tião (personagem emblemático dos cariocas de 1988)! Voto de protesto igualmente não pode ser direcionado para políticos do tipo Tiririca ou Enéas. Já que carregamos o fardo de, só assim, segundo alguns, mantermos a democracia, votemos conscientemente em quem fará algo mais, num crescendo, pela educação, saúde, pelo respeito à pluralidade de ideias, pela justiça social, cultura, cidadania...

Votar, sim, mas apenas naquele que não irá abortar um superprojeto, como o Temporadas Populares de Brasília da década de 1990, porque foi criado na administração anterior. Isto é, num político que, além de honesto – porque los hay, crea –, mostre a veia libertária na sua prática de vida para um mundo melhor, começando por si mesmo, sua família, rua, bairro, suas crianças e velhinhos, suas palavras, gestos, sua convivencialidade. Que lindo será esse dia! (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Muro das lamentações

(Arte: autoria desconhecida)

Atire a primeira pedra quem nunca reclamou. Eu, tu, ele. O ser humano aprecia sobremaneira. E para que servem lamentos? Nem conseguimos aprender a refletir, a nos tornarmos efetivamente responsáveis pelos direcionamentos de nossa vida! Queixas são saudáveis se passarem pela categoria de reivindicar a melhoria de algo: salário, condição de trabalho, moradia, saúde, educação. Note: reclamar por reclamar é discurso sem força e ressonância...

Na faculdade, combinávamos na sala que buscaríamos junto à direção ou a algum professor, benefícios para o corpo discente. Tudo ia muito bem, na maior empolgação. Quando nosso interlocutor chegava, ficava a Adriane procurando qualquer apoio dos colegas. Na hora de confirmarem o meu “Né, gente?”, o silêncio era ensurdecedor e derrubava qualquer possibilidade de negociação, e tudo ficava na mesma. Você estaria de qual lado, caro leitor?

Há quem suplique por uma doencinha, um mal-estar. Quer a todo custo uma enfermidade para que o mundo olhe para ele. É o chamado hipocondríaco. Um indivíduo que age assim chama a atenção para si, segundo seus desejos mais rasos ou profundos. Ocorre que, dessa forma, afasta pessoas que poderiam ajudá-lo. Entretanto, quem disse que o dito cujo quer se curar dessa doença horrível que padece? Não é exatamente ela que o faz sobreviver?

Nos dias de temperaturas congelantes, revelo meu lado insuportável. No Sul do país falo da temperatura, que não consigo me aquecer para trabalhar, que estou encarangada, que detesto o frio, e ironizo a graça de nascer neste Planeta... No verão, no Sul e no Norte, nos dias de 36 graus, com sensação térmica de 42, e o mormaço deixando essa vivente de mau humor, viro, aí, sim, um murmúrio só: calor, suor, rosto melado, tempo abafado...

Nesse sentido, torno-me igualzinha às criaturas que resmungam por outras coisas. De resto, vou administrando, já não rosno tanto, nem de coentro na comida. Pior é ser convidado para um almocinho especial por alguém que adora esse tempero. De longe você sente o cheiro da planta que parece salsa mas não é, e entende que não poderá degustar o prato com o mesmo prazer. Aí, não respira e engole rápido. Botando na balança, o amor do gesto amigo vale mais.

Falando em refeição, há quem reclame de barriga cheia. Se a mãe prepara o alimento com o que tem em casa: “De novo”? Se é de acordo com o paladar do filho, tem que ser composto de batata frita, bife, arroz e, talvez, uma rodela de tomate. Se tem polenta no cardápio, isso é gosto menor. Cá entre nós, desconheço povo mais feliz que o do Norte do país: pode comer açaí com farinha todo dia e a iguaria é sempre bem-vinda e festejada.

Difícil conhecer alguém que esteja contente com o que já tem: a saúde, a família, a cidade em que vive, o ambiente de trabalho, as roupas do armário. Chico Xavier, um dos meus maiores inspiradores, explica que a gente está onde devia estar. Enquanto nos orienta, sugere que não nos acomodemos num platô confortável, porém, aceitemos o que temos para hoje com mais gratidão e menos rabugice. Tenha a santa paciência: pessoas reclamentas são chatas demais. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Salve, amizade!


(Arte: autoria desconhecida)

É no período de eleições que se observa como a amizade é forte, aguerrida e brava. As conhecidas e comuns barganhas nos levam a constatar o ditado: “Para os meus, tudo. Para os outros, nada”. Em pequenas localidades fica mais evidente porque todo mundo se conhece, as cores ficam mais coloridas. Brigas e ofensas defendem o sicrano que é mais honesto, mais competente, mais preparado, mais o quê, mesmo?

Num passeio, ouvi uma conversa de arrepiar. Uma pessoa gostaria de ir até um amigo que havia passado por uma enfermidade e estava em recuperação. Obtemperou que não poderia fazê-lo por conta da campanha eleitoral. Se fosse agora, o companheiro pensaria que o intento serviria para angariar votos para o partido do visitante. Contudo, segundo este, a iniciativa era motivada “só” pelo bem-querer.

Passaram-se dias, assuntei uma prosa parecida. Meu pai queria visitar alguém (sem intenção eleitoreira), mas se realizasse a cortesia, o carinho seria interpretado como interesse político. É como se, em tempos eleitorais, um decreto ou uma sentença imaginária fossem determinantes: visitas cordiais não existem; o anfitrião pensará, indubitavelmente, que o encontro tem motivos diversos da pura e fraterna parceria.

Há décadas observo relações sendo desfeitas por conta de partidos políticos. Gente que hoje está numa sigla, daqui a quatro anos em outra e, em igual medida, a camaradagem vai se deteriorando. Até membros de uma família tornam-se inimigos e demoram a voltar a se falar (ou nunca mais se quadram) por conta de agremiações partidárias. Na minha cidade natal isso é comum. Na sua, idem.

No Brasil, funcionários privados e servidores públicos são obrigados a saírem, durante ou fora do expediente, para trabalhar por um candidato. Alguns vão por conta própria. Como provar, perguntei a uma amiga que me contou um fato. “É complicado, pois ninguém quer se expor ou perder o emprego”, afirmou. Teria de montar, quem sabe, uma espécie de tocaia usando câmera e microfone escondidos para o flagrante? E os bacharéis concluiriam com riso de obviedade nos lábios: “É o ônus da prova”.

Tem ainda os cargos que são prometidos antes do pleito. Se você votar em mim e fizer campanha pelo meu nome, a secretaria disso ou coordenadoria daquilo já é sua. Ai, ai, ai, ai, ai. Depois, em janeiro, nos esforçamos para entender, em vão, por que o fulano, incompetente e boçal, é o escolhido para tal posto. Dá uma dorzinha de cabeça no começo, todavia, o povo se acostuma... Afinal, é assim há séculos... Será?

De que adianta sabermos dessas coisas, se temos de apresentar as provas? A não ser que tomemos o Ministério Público como aliado e ajudemos a limpar uma minúscula parte da sociedade. Quem se habilita a denunciar? Porque na hora H, o fulaninho considerado vítima não tem suporte e coragem suficientes de encarar o fardo e, irá fugir da raia – tadinho, foi ameaçado de demissão!  Em época de promessas e discursos políticos fico emocionada. Realmente, amizade é coisa séria. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Medo do ridículo


Estátua de Tiradentes no centro de BH (Foto: Letícia Leite)

Em nossa cultura, ninguém gosta de ser ridículo ou ridicularizado. Percebeu isso? Ser alvo de zombaria é algo que não digerimos bem porque evidencia uma falha, um quê de desconcertante em nós – mostra a falibilidade da espécie. E ninguém almeja o fracasso, certo? Mas há uma frase que gosto muito, talvez de autoria de Confúcio, e a ideia principal é: o homem só evolui quando aprende a rir do seu próprio ridículo.

Coreanos, japoneses, chineses, taiwaneses, por exemplo, não têm medo de serem vistos como ridículos, de gostarem de coisas extravagantes, diferenciando-se dos ocidentais. Nas ruas brasileiras vendem desde utensílios relaxantes de cabeça até gaiolas cantantes de plástico. Tiram fotos com câmeras de última geração e passeiam por pontos turísticos com a curiosidade de uma criança. Visite as Cataratas do Iguaçu (PR) e saberá do que falo.

Dia desses, o músico cearense David Duarte postou na rede: “Ironia ou não, o ridículo quase sempre tem algo de muito original. Deve ser por esta razão que o confundem, em termos de arte, com ousadia”. É ou não é? Quando estou vestida de modo, digamos, peculiar, ouço elogios, principalmente de mulheres. Apostaria toda a minha fortuna [sic] que elas adoram o visual, de verdade; porém, muito mais porque desejariam vestir-se assim e não têm coragem.

Nesse sentido, paguei um supermico em Belo Horizonte (MG), num 19 de março, dia de São José. Daria uma palestra no interior do estado e saía da cidade, de carro e acompanhada de uma equipe, rumo à BR 040. A recém-apresentada Letícia contava que os mineiros dizem que em março, no dia 19, sempre chove bastante, a conhecida chuva das goiabas. Ouvindo isso e distraída com as novidades do trajeto, concluí que Minas teria um santo padroeiro, o São José.

De repente, entre a Brasil e a Afonso Pena, vejo uma estátua gigantesca e solto: “Olha, é o São José”? Todos se esforçaram para não rir de mim. Afinal, acabavam de me conhecer e eu era a convidada, impunha certo respeito. Então, discretamente, mas louca para cair na gargalhada, Letícia me socorre: “Não, Adriane. É o Tiradentes mesmo”. Até hoje, ao passar pelo mártir da Inconfidência Mineira em Belô, lembro-me da gafe e rio, como se escondesse um segredo.

Em outra feita, marquei depilação da virilha e ao me dirigir à sala reservada, a depiladora disse: “Fica à vontade que eu já volto”. Para mim, ficar à vontade nessas ocasiões significa tirar a calcinha para facilitar o serviço e evitar o lambuzo de cera na lingerie. De repente, ela volta e me vê deitada, toda tranquila, sem a roupa de baixo. “Pode botar a calcinha”, exclamou. Na cara da moça havia repreensão, como se me censurasse por tanta ousadia.

Então, caro leitor, até pagar King Kong faz parte das interações sociais. Entretanto, como sair das enrascadas que nos metemos? A propósito, o pior é aceitar que o ridículo é pessoal e intransferível. Como num palco, ficamos expostos. E ninguém nos impõe: “Seja ridículo”! Dessa forma, o ridículo é um tipo de ponte. Atravessá-la é uma prova, um desafio, um teste de sobrevivência e que ao passar para o outro lado nos tornamos menos deuses, mais humanos. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Fã de Samara


Em turma, adolescentes relaxam. Ufa! (Foto: autoria desconhecida)

Samara é uma garota de 14 anos. Trabalha no viveiro de flores da família à beira de uma estrada do Brasil. Samara é bonita, simpática, exímia vendedora, comunicativa e, em especial, entusiasmada. Completamente distinta da maioria dos adolescentes de sua idade – muitos são desanimados, mal-humorados, preguiçosos, reclamentos. Quando a conheci, me surpreendi tamanha a diferença evidente em seus olhos, gestos e passos.

Fiz questão de elogiá-la ao pai dela, caso não a valorize tanto. E a ela, se um dia, no futuro, ao trilhar uma carreira profissional, se esqueça do quanto esse momento de responsabilidade sendo talhada nas horas em que gostaria de estar conversando com as amigas é importante para o seu amadurecimento, ou, ainda, como quer o mercado, para turbinar o currículo. Detalhe: Samara parece realmente feliz com o que faz. É disposta, saca?

Samara é única porque não me cansou. Adolescentes, hoje, público que sempre me dei bem, me causam preguiça. Não gostam de quase nada que lhes é oferecido: comida, presentes, sugestão. Querem levar a vida na flauta, na maior facilidade. Estudar é coisa para CDF, trabalho para pobre. Percebe que adolescentes de classes sociais diversas parecem ter nascido em berço esplêndido? Estariam com a vida ganha? E os pais reforçam tal comportamento...

Samara é ímpar? É. Quem decide ser diferente da maioria impulsiona a grande roda de descobertas ao longo do desenvolvimento do mundo. São aqueles que querem algo mais, não se contentam com o mínimo, buscam sempre inovar, criar, produzir. Não falo de ideias desatinadas. E, sim, de atitude, de vislumbrar um rumo e segui-lo, de arregaçar as mangas. Isso não é exploração ou desrespeito ao ECA; isso é o que constrói seres inteiros.

Nesse ínterim, no desfiladeiro de elogios e aplausos pisca o sinal amarelo. Para adolescentes e crianças, almejar um patamar superior sem esforço é “habitual”, afirma Contardo Calligaris. Um dos psicanalistas mais badalados da atualidade é acusado por muitos pais de estragar os sonhos e o futuro de tão brilhantes e fantásticas criaturas. Genitores babam pelas grandes promessas de sucesso, iludindo-se que o mundo se curvará aos pés dos pimpolhos.

No texto Epidemia de amor pelas crianças, Calligaris explica que “os elogios incondicionais dos adultos aos filhos não produzem autoconfiança, mas uma dependência”. Depois, passarão a vida se esforçando para ouvir aplausos e não para alcançar o que desejam. O autor sugere “uma mudança preliminar na maneira de contabilizar as falhas que podem atrapalhar a vida de nossos rebentos”. Aliás, falhas e fracassos são inevitáveis no meu caminho, no seu, no deles.

No Facebook, uma campanha pede: “Pais, digam não aos seus filhos, pelo bem da humanidade”. Não precisamos voltar ao passado, torná-los invisíveis, sem valor. Talvez, um pouco mais de firmeza, diálogo, e exigir contrapartidas responsáveis e educativas, como lavar a louça, espanar o pó dos livros – e se tem livro em casa, há incentivo pela autonomia e engrandecimento do ser. Logo teremos formado legiões de pessoas amorosas, responsáveis, respeitosas, e, consequentemente, construtoras de um mundo bem melhor. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Amada mesa


Ilustração extraída do blog Vida e Arte Design (Blogspot) - autoria desconhecida

Como tem gente que “sobrevive” sem uma mesa? Para mim, ficar sem geladeira, cama ou fogão é fichinha. Mas, mesa? Não dá. Ela ocupa espaço nobre na arquitetura de interiores onde quer que eu more. Pequena, redonda, quadrada, de dobrar, com extensão, até escrivaninha vale. No entanto, as grandonas, de vários lugares, são meus xodós. Ali eu me espalho, e derramo todos os materiais de estudo, pesquisa e elaboração de palestras e textos.

Na vida de um estudante, escritor, professor, a mesa é indispensável para organizar as ideias. Em tempos de computadores portáteis, imagine seu autor preferido digitando a nova obra sentado num sofazinho molengo, enquanto tenta se ajeitar para não doer as costas, não deslizar a ferramenta de trabalho... Já em cadeira dura, sem ergonomia, o coitado terá de parar a escrita em breve. E em pé, sem chance de produzir uma lauda sequer!

Então, quem o socorre? A mesa. Reinando absoluta em suas construções – desde a época da máquina de escrever, dos pergaminhos em que as obras eram transcritas (vide a Bíblia) ou na atualidade com todas as maravilhas de apoio disponíveis –, é a mesa quem lhe dá sustentação para ideias brotarem exuberantes. É claro que sozinha é como a andorinha, precisa de outros elementos que completem o cenário. No caso, leituras anteriores e uma boa cadeira.

A imagem do escritor datilografando inúmeras vezes a mesma ideia, que não sai como ele deseja, é poética. Na madrugada, sob a penumbra da luz incandescente, inúmeras bolinhas de papel branco são amassadas e arremessadas na lixeira. Uma afronta aos contemporâneos conceitos sustentáveis de qualquer escrevinhador que se preze. Nesse sentido, hoje, a tecnologia contribui para evitar o desperdício, afinal, pensamos antes se é necessário imprimir.

Na hora do alimento, não será diferente. A mesa serve as refeições da grande família italiana, barulhenta e esfomeada diante da diversidade de pratos; da humilde, sem muita fartura, com porções iguais para todos; ou, ainda, da silenciosa oriental, com mesa baixinha. Minha irmã, por exemplo, adora pôr a mesa, organizar sobre a toalha a geleia, o pão, o leite, o café, tudo para dar mais prazer à ocasião. O que encanta os olhos toca o coração, a mente, os sentidos.

Também é à mesa que surgem, muitas vezes, assuntos delicados dos relacionamentos humanos. Difícil é administrar a ingestão da comida com a digestão dessas complicadas celeumas. Mulheres nervosas, filhos indisciplinados, homens desajeitados, idosos quietos. Todos debatendo, de alguma forma, a resolução ou o acirramento do conflito. Quiçá, em outra parte, haverá quem esteja num jantar romântico ou num almoço repleto de oportunidades.

A mesa tem uma espécie de alma. Se de madeira, há uma árvore escondida ali. É como a escultura que vai surgindo, mas dentro dela segue pulsando a força da natureza. Sou fã dos marceneiros que constroem mesas e as transformam em peças decorativas ou úteis. Assim, esta é minha ode à mesa. Obrigada, companheira, por me permitir apoio em horas delicadas – dos desabafos que nunca publicarei às ideias que brotaram e não me pertencem mais. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A teimosia é burra


(Arte: autoria desconhecida)

Aos 18 anos, num sábado à noite, na frente de uma danceteria em São Miguel do Oeste (SC), aguardava com amigos a abertura da casa. O papo girava em torno dos indígenas. Para mostrar erudição, larguei a pérola: “Sabe aquela arma, a barbatana”? Um atento rapazote consertou: “Zarabatana”. Percebendo a gafe, teimosa, retruquei: “Nada disso, é barbatana”. E ficamos naquela onda de, eu, teimar na burrice, e ele, defender a informação correta.

Claro, essa anedota foi importante para mim, talvez o moço nem se lembre do fato. Porém, o que me faz relatá-la, duas décadas depois, é que, de modo geral, todos somos, em algum momento, teimosos. Tal é a ignorância. Ao nos esclarecermos, saímos do limbo, do círculo vicioso. Contudo, uma parte significativa das pessoas quer ficar conhecida, parece, como sujeitos entediantes. O teimoso é chato a granel; é chato pra caramba.

Mais de uma vez, o teimoso insistiu para entrar na fila da chatice. Diz não, porque não e pronto, e ponto. Por quê? Porque sim, diz. Ou seja, nem sabe direito do que está falando. Em volta do umbigo dele há toneladas de orgulho, pesando o viver. Acha a própria opinião mais bonita, mais legal, mais certa, mais jeitosa, mais, mais. Todo mundo foge do cerco do teimoso, e o elege como o chato de galocha do ano.

Reinventar-se, a cada instante, é preciso. Limitações, como a teimosia, devemos tentar eliminá-las ou, quiçá, minorá-las, o mais breve possível – depois, na ribanceira abaixo da vida, transformações exigem força descomunal. A não ser que a pessoa tome consciência de que carece mudar, por ela ou pela saúde do mundo. Todavia, o que funciona é a autoanálise a partir de uma doença, um acidente, uma grande perda. Aí poderá haver salvação...

O teimoso é o cara que ninguém quer por perto, pois ele sempre sabe tudo; então, quem tem prazer e alegria em sua companhia? A coisa complica quando você convive com a figura e a relação precisa existir, ainda que por um tempo: o chefe, um familiar, o marido. Afinal, não mudamos ninguém só porque achamos que é necessário e, convenhamos, não dá para pedir demissão de todos os teimosos do mundo.

Entretanto, o que falta ao teimoso e ao ouvinte do teimoso? Sim, pouco se fala do lado dele. Àquele, humildade e reconhecimento de que sua pequenez é tamanha que assim procede por se sentir inferior – disfarçando-se na superioridade. A este, paciência e compreensão da situação – as opções são poucas: tolerar ou afastar-se do indivíduo que só lhe suga as energias, quer dizer, compreendê-lo o quanto pode e afastar-se quando possível.

Não me orgulho nem um tiquinho de minha teimosia do passado. Não sei quanto já eliminei dela em mim – é fato que melhorei muito nesse quesito. Portanto, é bom estar ligado. Pessoas despreparadas fomentam discussões intermináveis, e, às vezes, é preciso silenciar, mesmo quando o discernimento maior seja o nosso. É a diferença entre teimar e persistir. Para mim, depois de 40 novembros, o mais importante não é ter razão, mas ser feliz. (Adriane Lorenzon)