sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Dona Morte

A persistência da memória (Salvador Dalí)


Um dia abri os olhos e me dei conta que estava viva, que só a vida importava, como se a fonte fosse inesgotável. O Ocidente em que vivia (e vivo) estimulava curtir a vida “adoidado”... Mas quase nunca tratava do seu contrário, a dona Morte; aquela que quando chega não é esperada, embora saibamos que baterá à porta, impreterivelmente. Adjetivada, tal senhorinha tornou-se a foice, a miudinha, a caveira, algo sem assertividade nenhuma.

Daí fiz uma conexão direta desse modo de compreender a existência com a forma de usar os recursos naturais pela humanidade: excessiva, abusada, desrespeitosa, egoísta. É como se a natureza tivesse sempre um tanto de água, de minério, de madeira a ofertar – pródiga em sua generosidade, coitada! Como se fosse obrigada a servir certo bípede, pretenso topo da cadeia, inteligência rara, animal diferenciado, poderoso chefão, com um pouco mais de... vida.

Depois de os olhos, além de abertos, se arregalarem, realizei outras ligações e fui pesquisar essa confusão toda. Sim, porque vira uma grande celeuma na minha e nas demais cabecinhas tontas de pensar. Observei que não estudamos a morte, não lemos nem refletimos sobre a morte e, portanto, não entendemos o desapego e toda a dimensão vária que a falta ocupa nos corações quando da “partida” de um amado nosso. Como dirigir a vida, então?

Ah, é, a sociedade até aborda a morte. No Dia de Finados somos lembrados a homenagear essa galera toda que já se foi. Telejornais informam a venda de dúzias e dúzias de crisântemos e que familiares lotarão os cemitérios... Todo ano é a mesma coisa. Repórteres, ainda se quisessem, não conseguiriam ser criativos porque o pauteiro/chefe de reportagem não deixa – a morte, em sentido mais abrangente, não deve mesmo subir à tona do agendamento do dia.

Para alguns, a morte não é oposto; é, sim, sinônimo de vida porque continua em outro plano. O corpo morre e a alma se liberta, prosseguindo a viagem. Para outros, vida e morte formam um todo, se completam. E para outros tantos, é o momento de iniciar o período de penas ou regozijos eternos. Contudo, independentemente do credo, a morte “é”. E isso, talvez, é o que a faz tão poderosa e contundente. Diferentemente da vida, que “pode ser”.

No final das contas, por que não falar de morte, fugindo do crucial instante que nossa jornada impõe? A todos, diga-se de passagem. Um dia vamos parar em outro lugar, sumir da matéria, do mapa. Antes disso, de modo geral, teremos enterrado (cremado e outras formas de “guardar” o corpo) criaturinhas amadas. Agora, se não nos desprendemos nem de uma camisa velha do armário, como desapegar de alguém que amamos profundamente?

“A morte é a libertação total”, escreveu Mario Quintana. E com muito bom humor, o velhinho do hotel Majestic concluía que “é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos”. Nesse sentido, Erasmo Ruiz, um cara que conheci lendo um texto da Internet, diz que “a poesia é um dos poucos redutos onde podemos aprender um pouco da arte de morrer”. Assim, que nossa lucidez invada essas zonas perigosas – e libertadoras – para apreendermos a morte e, junto a ela, a intensidade da vida. Morte e vida, vida e morte, uma relação indissociável. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Raça humana

(Arte: autoria desconhecida)

Um dia precisamos ser lembrados que existe algo mais do que nosso olhar consegue avistar à frente ou de que nosso pobre umbigo pretende saber. Por isso são estabelecidas datas em homenagem a temas complexos como a Consciência Negra, em 20 de novembro, no Brasil. Medida altamente positiva que nos mostra uma parte da gigantesca pluralidade dos grupos sociais que compõem o mundo. Mas até quando precisaremos lançar mão disso?


Pelo que li na área de antropologia – ciência que estuda o homem, na categoria de bípedes pensantes não existe outra espécie que não a humana. Pelo menos, por enquanto. Nesse sentido, a expressão raça negra é a maior bobajada, sem nenhum fundamento. Contudo, o que temos são etnias; aliás, múltiplas – conceito plural e distinto do simplismo que se tenta reduzir o entendimento de humanidade. A raça é humana, não importa a cor da pele.  

Em 2010, no Censo do IBGE, fiquei tentada a me definir como amarela. Minha ascendência genealógica passa pela Itália, Áustria, Espanha, Uruguai, Brasil (caboclos e índios), Portugal, França, e as Arábias... ôps... acabei caindo na África. Eu sabia que tinha um pezinho lá! Muitos antropólogos afirmam que todos descendemos de um único ancestral africano. E a minha palidez? É que a coloração original é mais para a gema do que para a alvura, o sangue ou a noite. Então não seria asiática, logo ali pertinho? A princípio, não. Mas quem dirá o contrário?

Já ao ser indagado sobre o que achava do mês da consciência negra, o ator estadunidense Morgan Freeman, concluiu em entrevista ao 60 Minutes da tevê dos EUA: “Ridículo”. Por quê, pergunta Mike Wallace. “Você vai confinar toda a minha história em um único mês”? E o apresentador: “E como vamos nos livrar do racismo”? Resposta: “Parando de falar sobre isso. Eu vou parar de chamá-lo de branco e o que lhe peço é que pare de me chamar de negro”.

Observe no dia a dia. Ao explicarmos a alguém quem é certa pessoa, personagem de um fato, falamos: “É aquele coxo, zarolho, moreninho, sarará, deficiente”... Ou ainda, partimos para o lado do ter e do glamour: “É o cara do novo Focus, a namorada do promotor, o filho do prefeito”. Tal metodologia de vida é a mesma em obtusidades e preconceitos que a anterior. Dessa forma, julga-se pela aparência, incentivando a falta de foco e amplitude na visão. Sacou?

Sem querer igualar animais racionais a irracionais – apesar de estes, muitas vezes, serem superiores, asnos, por exemplo, também têm suas particularidades. Não deixam de ser da grande família equus a que pertencem porque misturam seus asinus aos caballus. Burros, jegues, mulas, jumentos, bestas, marronzinhos ou cinzentinhos, continuam sendo muares. Isso prova que as diferenças que os destacam é o charme da coisa. No caso humano, é o que nos engrandece. Embora, para alguns, isso, sim, é que é asneira; desculpando o trocadilho...

Para a blogueira Larissa Carvalho, “o resultado do último Censo revela (...) a consciência da valorização da própria identidade entre os afro-brasileiros”. A maioria se considera negra ou parda. Todavia, os números mostram que estamos criando uma consciência integral, que extrapola a quantidade de melanina visível na epiderme. Trata-se do sentir-se humano. Em Alma não tem cor, o músico paulistano André Abujamra diz: “Percebam que a alma não tem cor, ela é colorida, ela é multicolor”. Bem isso! (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Falsas alegrias

(Foto: autoria desconhecida)

Duas meninas, de um ano e seis meses e um ano e dez meses, se encontraram e foram se aproximando, titubeantes, como é o caminhar dessa idade. Meus olhos flagravam o inusitado. Todos aguardavam a possibilidade de confronto – crianças brigam, puxam cabelo... Contudo, o que presenciamos foi um gesto de amor. Uma delas parou, fitando a outra se achegar. Esta alcançou o rosto da nova amiga e o acariciou com a delicadeza típica da pureza.

O filme (poderia sê-lo, mas era realidade) estava rodando quando um grito, três mesas à frente, interrompeu a tomada. A mocinha em ação parou, olhou em direção ao som com a calma dos sábios, aguardou o pseudossilêncio, e prosseguiu na eternidade e ternura do gesto. Novo grito, nova parada, novo recomeço. Depois, tudo de novo de novo. Até que as pequenas professoras envolvidas com a possibilidade de comer um salgadinho saíram de cena. Corta.

Numa dessas circunstâncias da vida, reencontrei uma amiga que não via há dez anos. Ela sugeriu um bar para irmos e não vi problema nenhum – não era eu que conhecia a cidade e o reencontro em si era o mais importante. Ao chegarmos, vi um telão ao fundo e uma tevê gigante na entrada em alto volume. A bola rolava numa disputa de título. O ruído atrapalharia qualquer intento de relaxamento e interação. Pensei: “Será que vamos conseguir conversar”?

Perto da gente, um rapaz, de costas para mim, gritava enlouquecidamente a cada gol ou possibilidade de balançar de rede. Os urros eram altos e prolongados. No apito final, bateu na mesa, gesticulou com o punho fechado para o alto, e se eu olhasse de perto, babava, extravasando sentimento raivoso. Na mesa, tentávamos dialogar. Assim como o gesto das crianças fora interrompido, paramos também. Corta.

O momento, para mim, era singular – não frequento esses espaços. Então, sem resistir à ironia, perguntei ao irmão da minha amiga: “Quanto o Fluminense está pagando para o cara torcer assim”? Também apaixonado, porém controlado, disse que fazia quatro anos que o Clube não ganhava uma premiação dessas. Eufórica (o ambiente estimulava isso), ouvi 34 anos. Aí entendi, aceitei por um segundo, mas fui corrigida: “Não, é quatro anos”. E eu: “Ah”...

Além do mais, o gritão vinha acompanhado da namorada/esposa. Lá no fundo, a feminista que mora em mim, perguntava-se: “Que mulher é essa que se sujeita a isso ou, pior, que gosta disso”? Entenda, caro leitor. Mesmo que algumas ainda passeiem meio tontas, nós mulheres viemos equalizadas de fábrica, ligadas a sentimentos nobres, pois temos, de modo geral, a missão de elevar a frequência vibracional do mundo: famílias, relacionamentos, empresas...

Conclusão mais do que óbvia: sinto uma megadificuldade de me situar numa sociedade que valoriza abusos. Não me refiro aos grandes dramas humanos como a miséria e a guerra. Falo daquilo que aos olhos da maioria é bonitinho, engraçado, e, portanto, aceitável: excessos no carnaval, futebol fanático, músicas incentivadoras de vidinhas mais ou menos. Por fim, acabo sendo, eu, a desajustada, digna de reconhecer a velha máxima: “Os incomodados que se retirem”. Entretanto, da grande viagem da existência, não dá para desembarcar. Mas do bar, bem que eu respirei aliviada quando minha amiga nos convidou: “Vamos”? (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

A vida aos 40


Adriane Lorenzon falando do livro PODER LOCAL NO AR no Prosa em Sintonia da Embrapa - Jaboatão dos Gauararapes - PE 
(foto: Marcos La Falce )

A casa dos enta é minha morada há um ano. Com condições propícias, chegarei aos ento como Niemeyer, mas isso seria lucro. Para uns, o início da vida é aos 40 anos. O que faz sentido para quem passeava nos desacertos, desequilíbrios, controles e escolhas equivocadas. O que é, para as pessoas em geral, o período antes dos 40? Vazio? De toda forma, as quatro décadas são um dos momentos mais importantes desta autora – simplesmente porque acontece no agora.

Para a jornalista Eliane Brum, a sociedade entende que a vida começa aos 40 porque acha que a vida da mulher só então desabrocha – por estarmos ainda “bonitas”, termos a carreira consolidada, os filhos voando... Já os homens, mais crescidinhos, penso, sem tanta ansiedade no ato sexual melhoram o desempenho, ou porque conseguem bancar as contas da família que, claro, surgiu como um caminho único de felicidade, passando, finalmente, a viver.

Comigo a vida começou lá pelos 23, ao dar-me conta de algumas perguntas que nunca suspeitara delas. Não sei se elas sempre estiveram ali. O fato é que apareceram e me botaram para refletir. Em tempo passado, houve vida também; meio torta, diga-se de passagem. Caetano Veloso, no álbum Cinema transcendental (1979) vai fundo no abismo humano: “Existirmos: a que será que se destina? (...) Apenas a matéria vida era tão fina”.

Tudo o que consegui concluir não era senão a impermanência, porque logo ali, aos 28, nova fase se instalou. Para os taoístas, dizia uma amiga, é nessa idade que a gente sai, por fim, da adolescência. Não pesquisei se é isso mesmo, mas fez um sentido danado porque me vi amadurecendo, como a fruta pronta para ser apreciada intensamente. E não falo de sexo, embora Balzac reverenciasse as trintonas, pois o amor poderia ser vivido com plenitude.

Aos 36, passei por aulas com professores incríveis. Primeiro, com minha mãe. Aprendi tanto, tão profundamente, que pensei não haver mais espaço em mim. A cada nova lição, aumentava de tamanho. Não engordei tanto nos pneuzinhos localizados, porém ampliei espaços imensuráveis a olho nu. Acabei habilitando-me para a pós-graduação que inauguraria aos 40. Se é acaso para você ou porque a vida se inicia, sim, aos 40, pouco importa.

O lance é que depois que a gente cresce, não dá para encolher ou desfazer o conhecido. E quando a gente fica grande, torna-se responsável demais por todo esse conhecimento. Quando eu era pequena, minha mãe, sábia, ao analisar uma situação conflituosa entre os filhos, dizia: “Se o pequeno não entende, o grande tem que procurar entender”. Reservadas as devidas particularidades, tal orientação é indicação salutar de dirimir quaisquer pendengas.

Vou contar-lhe uma história. Diz-se que um homem veio ao mundo para viver 80 anos, 40 deles na miséria e a outra metade na riqueza. Ele poderia optar antes de nascer se preferia uma ou outra condição social primeiro. Não teve dúvida, mandou ver na alternativa dos fartos bens. Eu e você, como faríamos? O lance é que o cara escolheu, depois de matutar, a riqueza; multiplicou-a, administrou-a, dividiu-a e, com isso, viveu a vida octogenária na abundância. (Adriane Lorenzon)

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Bial e o muro de Berlim


O muro de Berlim foi derrubado em 9/11/1989 (Foto: Ulda Zoca de Grava)

Interpelando o tempo, observo que faz alguns milênios que as pessoas se entretêm iludidas com julgamentos e suposições acerca do outro. E este é, quase sempre, o desviado do padrão, o diferente, o abusado – ao turvo mirar do olhador. Então, ao me reportar à era atual, vejo que nessa diversão há um deslumbramento com aquilo que a aparência e a hipocrisia nos mostram ou escondem como verdade, entendimento de vida, modelo a ser seguido ou combatido...

Vamos por partes. Uma pergunta incomoda muita gente, em especial, jornalistas. Por que Pedro Bial, repórter de eventos históricos como a queda do muro de Berlim, em 1989, escolhe a ocupação de apresentador de um programa de baixo nível educativo-cultural como o BBB? Ou ainda, disse alguém em contexto distinto, por que achar que Daniel, o cantor sertanejo, não teria atributos para avaliar um músico de MPB em recente produção global?

Para mim, o buraco é bem mais embaixo. Por que pressupor que o referido jornalista seria modelo de criticidade e coerência? De onde vem a necessidade de julgar com desconhecimento e preguiça de refletir sobre criaturas que nos são apresentadas a distância? Por que inferir que fulano deveria ser elitizado e refinado intelectualmente? Ou que beltrano não é capaz, não é habilitado, não é suficientemente nobre para exames musicais plurais?

Sempre digo aos meus alunos: “Antes de estarmos jornalistas, somos humanos”. Isso ocorre em qualquer área, é óbvio. E é essa condição que nos permite “falhar”. Somos incompletos, impermanentes, suscetíveis, e, em especial, falíveis. Ufa, que alívio! Se fôssemos magistrais, nossa onda seria outra. Todavia, se só raros fossem certinhos, como eu ou você, seria uma cobrança geral, jamais poderíamos pisar na bola e aprender novas lições.

Observemos a área política. Quando a “esquerda” subiu ao governo no Brasil, pressupunha-se que não haveria falcatruas. Claro, há séculos só a “direita” roubava, corrompia, enganava, mas a “esquerda”, jamais, até porque ela se intitulava ilesa das seduções gananciosas. Agora sabemos que tais siglas contêm um elemento comum: a humanidade. E, portanto, qualquer partido, sem exceção, pode sofrer as tentações da matéria, do poder, do dinheiro...

Errado pensar, também, que se o cara é padre não estará sujeito ao chamariz da carne. Daí os inúmeros casos de homossexualidade enrustida, pedofilia, e daqueles que abandonam a batina porque resolveram se casar, com mulheres, claro. É equivocado, igualmente, achar que o espírita é perfeito porque a doutrina sugere o melhoramento interior do ser. Entenda. Antes de qualquer bandeira levantada, somos todos pequenos bípedes rastejando para amadurecer a mente, os sentimentos, as atitudes, a alma. Um cisco, dizia Chico Xavier de si mesmo.

Embora procure compreender, fico indignada com essa forma de encaminhar a vida, escolhida por grande parte dos indivíduos. Deduzir sem conhecimento de causa, sem saber aonde a criatura andou para se construir assim, pressupor que o outro é só defeito e nada de virtude, é jornada perdida, dor garantida, revide certeiro. Não quer dizer que não se carregue ideologias e algum ônus por empunhar pendões polêmicos. Bial tem qualidades, mas não está livre de limitações nem sabemos onde aperta seu sapato. Daniel, idem. E nós – eu e você? (Adriane Lorenzon)