(Foto: autoria desconhecida)
O filme (poderia sê-lo, mas
era realidade) estava rodando quando um grito, três mesas à frente, interrompeu
a tomada. A mocinha em ação parou, olhou em direção ao som com a calma dos
sábios, aguardou o pseudossilêncio, e prosseguiu na eternidade e ternura do
gesto. Novo grito, nova parada, novo recomeço. Depois, tudo de novo de novo.
Até que as pequenas professoras envolvidas com a possibilidade de comer um
salgadinho saíram de cena. Corta.
Numa dessas circunstâncias da
vida, reencontrei uma amiga que não via há dez anos. Ela sugeriu um bar para
irmos e não vi problema nenhum – não era eu que conhecia a cidade e o reencontro
em si era o mais importante. Ao chegarmos, vi um telão ao fundo e uma tevê
gigante na entrada em alto volume. A bola rolava numa disputa de título. O
ruído atrapalharia qualquer intento de relaxamento e interação. Pensei: “Será
que vamos conseguir conversar”?
Perto
da gente, um rapaz, de costas para mim,
gritava enlouquecidamente a cada gol ou possibilidade de balançar de rede. Os
urros eram altos e prolongados. No apito final, bateu na mesa, gesticulou com o
punho fechado para o alto, e se eu olhasse de perto, babava, extravasando
sentimento raivoso. Na mesa, tentávamos dialogar. Assim como o gesto das
crianças fora interrompido, paramos também. Corta.
O momento, para mim, era
singular – não frequento esses espaços. Então, sem resistir à ironia, perguntei
ao irmão da minha amiga: “Quanto o Fluminense está pagando para o cara torcer
assim”? Também apaixonado, porém controlado, disse que fazia quatro anos que o
Clube não ganhava uma premiação dessas. Eufórica (o ambiente estimulava isso), ouvi
34 anos. Aí entendi, aceitei por um segundo, mas fui corrigida: “Não, é quatro
anos”. E eu: “Ah”...
Além do mais, o gritão vinha
acompanhado da namorada/esposa. Lá no fundo, a feminista que mora em mim,
perguntava-se: “Que mulher é essa que se sujeita a isso ou, pior, que gosta
disso”? Entenda, caro leitor. Mesmo que algumas ainda passeiem meio tontas, nós
mulheres viemos equalizadas de fábrica, ligadas a sentimentos nobres, pois
temos, de modo geral, a missão de elevar a frequência vibracional do mundo: famílias,
relacionamentos, empresas...
Conclusão mais do que óbvia:
sinto uma megadificuldade de me situar numa sociedade que valoriza abusos. Não me
refiro aos grandes dramas humanos como a miséria e a guerra. Falo daquilo que
aos olhos da maioria é bonitinho, engraçado, e, portanto, aceitável: excessos
no carnaval, futebol fanático, músicas incentivadoras de vidinhas mais ou menos.
Por fim, acabo sendo, eu, a desajustada, digna de reconhecer a velha máxima:
“Os incomodados que se retirem”. Entretanto, da grande viagem da existência,
não dá para desembarcar. Mas do bar, bem que eu respirei aliviada quando minha
amiga nos convidou: “Vamos”? (Adriane Lorenzon)
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