sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Ode ao leite

(Vaca jersey numa das minhas tantas viagens - Foto: Adriane Lorenzon)

No inverno, o organismo apetece caldos quentes, um bem-estar aquecendo por dentro, pois lá fora está congelante. No período mais rigoroso, em algumas regiões, as criaturas se amasiam à preguiça, à ociosidade, ao cobertor. Melhor é ficar em casa enrolado no acolchoado de lã, de pena, ao redor do fogão, lareira ou de aparelhos elétricos que amenizam o frio. Qualquer lugar, menos a rua. Tomar chá, café, chimarrão, leite é fundamental, não apenas pelo alívio físico, mas até para organizar as ideias.

Vou contar-lhe uma história. De manhã, no inverno, ainda escuro, milhares de produtores rurais saem debaixo da coberta para trabalhar e nos ajudar nos confortos da cidade. Levantam cedo para tirar o leite daqueles quadrúpedes – que eu adoro – chamados vacas. As mulheres, em especial, “aprisiam” [acendem] o fogo no fogão a lenha, colocam a chaleira d’água sobre a chapa, agasalham o corpo com casacos e botinas e se dirigem ao curral. Lá, os animais, já concentrados, aguardam o pasto que irá alimentá-los durante a coleta do leite.

Imagine a cena. Ela ocorre diariamente, sem chance de apertar o modo soneca e dormir cinco ou dez minutos. Camponeses arregaçam as mangas, dão de comer aos ruminantes, limpam os úberes das Mimosas, Malhadas, Cinderelas e os tocam de um jeitinho especial para o bicho não esconder o leite. Os gatos estão todos ali na maior expectativa: eu sou “prima” [primeiro]; eu, “siga” [segundo]; quanto sobrará hoje; sai daqui seu esganado; dá um pouco pra mim!

Sim, vacas liberam o branquinho para ordenhadeiras – cabos e cabos embutidos nos mamilos cheios de generosidade. Embora, atualmente, seja mais acessível, o equipamento é privilégio de algumas propriedades; nem por isso, aprecia-se a cama por tempo superior ao da natureza. O jeito é encarar o frio, quebrar o gelo com toda a coragem do mundo e higienizar a região mamária – do bovino, no caso. Ou mesmo dar uma esquentadinha rápida na água para agradar a si e à nobre parceira das divinas tetas.

Acompanhe. Antes de tudo, silagem no cocho. Depois, amarram-se as patas traseiras e o rabo junto, se conseguir – como sempre tem mosca por perto, o animal agoniado precisa espantar a bicharada do lombo. Depois, lava-se o úbere. Na sequência, de cócoras ou no banquinho, começa-se o ritual. Uma puxadinha de leve... Ordenha daqui, espreme dali e o líquido sai com fumacinha e tudo para a leiteira a ser esvaziada no balde. A propósito, o gosto do leite recém-tirado é horrível. Uma coisa morna com temperatura indecisa. Definitivamente, provei e não aprovei. Mas valeu a experiência.

E você aí pensando no leite nascido em caixinha? Já havia pensado nisso? Ao terminar a tarefa na Mimosa, é hora de começar na Malhada, e assim por diante. Depois de toda a coleta é hora de liberá-las ao potreiro. Poderão pastar, ruminar, mugir, deitar, caminhar, atolar-se até o fim do dia, quando tudo começa outra vez. Gatos miando, galináceos correndo pra lá e pra cá, mulheres e homens dizendo “tô, tô, tô”, e as vacas se aproximando. Inclusive as bravas tornam-se menos agressivas por causa da comida. Entretanto, na primeira oportunidade, deixa de amarrar as patas para ver o que acontece!

A fria estação é pródiga em belíssimas paisagens, porém, dolorosa, por vezes, para quem vive no campo. Geralmente, ao pensarmos na dificuldade de acordar antes do sol raiar, lembramos dos moradores urbanos. Mas na roça, é complicado. Chuva, barro, bastante serviço ao ar livre para realizar. E os animais também comem no inverno. Dieta? Nada. Alguém precisa servi-los. Além do quê, nessa época, por conta das baixas temperaturas, o capim é escasso. Logo, dependem da mão humana para o valoroso auxílio em cada amanhecer e entardecer.

Na zona rural, tudo parece bonito aos olhos distantes de tal realidade. Contudo, detalhes como mãos vermelhas e pés rachados pela mistura de frio e vento, não escapam do bom observador. Despertar na alvorada é só um aspecto da vida de pessoas anônimas. Uma doação abnegada esconde-se a cada manhã e precisa ser reconhecida. Essa ode ao leite, à vaca, aos pequenos produtores rurais é meu agradecimento pela comodidade de, principalmente, no inverno, encher a caneca de leite e poder aquecê-la no micro-ondas. (Adriane Lorenzon) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário