sexta-feira, 29 de julho de 2011

Sem medo de ser feliz

(foto: autoria desconhecida)

Você brinca de esconde-esconde consigo mesmo? Sabe dos seus sonhos e teme concretizá-los porque os outros os consideram ousados demais? Passou no curso almejado por seus pais e vai terminá-lo, afinal, já estudou quatro ou cinco semestres? Adoraria viver numa região de clima ameno ou com menos violência, mas suporta a atual, fazer o quê, está acostumado? Um monstrinho toma forma dentro de quem insiste em negar a própria realização. Um dia a coisa toma uma dimensão tamanha e a criatura perde a referência do que é seu e do que é de outrem.

Eu quis atuar como fotógrafa, ginasta, professora, dançarina de jazz contemporâneo, engenheira civil, cantora, jogadora de handebol, poeta. Está bem, é certo: poeta sobrevivendo da comercialização de seus poemas é meio difícil, porém, sonhei. Participei de festivais de música, comecei com Rosana, passei por Elis Regina e Tom Jobim.  Fui péssima jogadora de handebol e o troquei pelas corridas. A engenheira rendeu-se às letras. O jazz virou música para ouvir. Apesar dos empecilhos, procurava uma direção a trilhar...

Certa feita, acordei respirando trabalho, trabalho, trabalho...  Aí decidi sair do emprego e tentar a cidadania italiana. Andava vasculhando a história familiar e, morando em Brasília, aproveitei para buscar dicas na embaixada e com pessoas que conseguiram o documento. A ideia: ficar três meses na Itália para agilizar o processo. Antes, curtiria uma temporada com a família e depois... Velho Continente.

Para ir ao Rio Grande do Sul, à casa paterna, usaria meu carro – levando os pertences principais e oferecendo mais conforto à Penélope, a fofucha gata Pepê. Colegas professores tinham feito jornadas emocionantes parecidas e, por isso, estimaram sucesso no empreendimento. Todavia, quando amigos souberam que não haveria outra pessoa comigo no trajeto... o mundo se acabou. Note, a-mi-gos! Tocaram o terror, como se diz na gíria. Despejaram seus medos em mim afirmando que era perigoso, arriscado, devia tomar cuidado. Perguntei: “Perigoso em quê”? Ninguém soube responder: o medo residia na cabeça de cada um.

Reconheço. Alguns falaram em tom de afeto. Contudo, deram-me de presente um pacote de temores e até de disfarçado desejo de fazer o mesmo e serem impedidos pelo trabalho, marido, namorada, escola das crianças, convenções sociais. O desconhecido assustava a eles; a mim, instigava. Um pouco mais frágil e aberta a influenciações, cancelaria a viagem, mudaria os planos... ou nem pediria demissão porque sair de um trabalho numa empresa pública – ó o status – é quase uma insanidade. Um colega radialista me alertou: “E a estabilidade, Adriane”? E eu lá com os meus botões: “E a minha felicidade”?

Depois de chacoalhar o pelo como fazem os cachorros molhados, botei o pé na estrada. Comprei um superguia em formato A4, separado por estados, facilitando a busca pelas rodovias a serem alcançadas pelo potente um ponto zero, 70 cavalos de pura adrenalina. A peripécia intitulada “A Grande Viagem” me levou a vários estados brasileiros, e cada vez que cruzava divisas sentia-me tão livre e desbravadora como espanhóis e portugueses pelos mares na época dos descobrimentos. Aquilo, sim, era aventura!

Ouvi e reouvi as músicas selecionadas para os dois mil quilômetros do roteiro. Conversei com Pepê – afinal, éramos somente eu, ela e Deus. Refleti sobre o que fizera até ali, as novas conquistas, sonhos e interesses. Aquela parada obrigatória servia para avaliações mais profundas. Tratava-se, na realidade, de uma viagem interior. Em resumo, não fui à Itália, fiquei só na pesquisa genealógica junto à parentela brasileira – Penélope adoeceu e as prioridades mudaram. De novo ouvi barbaridades: “Você está louca, deixar de ir à Europa para cuidar de um bicho”? Ai, ai... dá-lhe paciência...

Descubra: um dos maiores baratos da vida é seguir “o rumo do teu próprio coração”, como nos versos de Nico Fagundes. O lance é que poucos concebem tal projeto porque, entre outros requisitos, é exigido coragem, disciplina e saber surfar no caos das dificuldades do caminho – a propósito, essas estão garantidas. Entretanto, há muito mais que obstáculos – flores, pores do sol, pessoas fabulosas, conhecimento, novos paladares, animais carinhosos nos cativando como a raposa de Saint-Exupéry... E assim a gente vai, dia após dia, se transformando naquilo que sempre quis ser.

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