A persistência da memória (Salvador Dalí)
Um dia abri os olhos e me dei
conta que estava viva, que só a vida importava, como se a fonte fosse
inesgotável. O Ocidente em que vivia (e vivo) estimulava curtir a vida “adoidado”...
Mas quase nunca tratava do seu contrário, a dona Morte; aquela que quando chega
não é esperada, embora saibamos que baterá à porta, impreterivelmente. Adjetivada,
tal senhorinha tornou-se a foice, a miudinha, a caveira, algo sem assertividade
nenhuma.
Daí fiz uma conexão direta
desse modo de compreender a existência com a forma de usar os recursos naturais
pela humanidade: excessiva, abusada, desrespeitosa, egoísta. É como se a
natureza tivesse sempre um tanto de água, de minério, de madeira a ofertar –
pródiga em sua generosidade, coitada! Como se fosse obrigada a servir certo
bípede, pretenso topo da cadeia, inteligência rara, animal diferenciado,
poderoso chefão, com um pouco mais de... vida.
Depois de os olhos, além de
abertos, se arregalarem, realizei outras ligações e fui pesquisar essa confusão
toda. Sim, porque vira uma grande celeuma na minha e nas demais cabecinhas
tontas de pensar. Observei que não estudamos a morte, não lemos nem refletimos sobre
a morte e, portanto, não entendemos o desapego e toda a dimensão vária que a
falta ocupa nos corações quando da “partida” de um amado nosso. Como dirigir a
vida, então?
Ah, é, a sociedade até aborda
a morte. No Dia de Finados somos lembrados a homenagear essa galera toda que já
se foi. Telejornais informam a venda de dúzias e dúzias de crisântemos e que familiares
lotarão os cemitérios... Todo ano é a mesma coisa. Repórteres, ainda se
quisessem, não conseguiriam ser criativos porque o pauteiro/chefe de reportagem
não deixa – a morte, em sentido mais abrangente, não deve mesmo subir à tona do
agendamento do dia.
Para
alguns, a morte não é oposto; é, sim, sinônimo de vida porque continua em outro
plano. O corpo morre e a alma se liberta, prosseguindo a viagem. Para outros, vida e morte formam um todo,
se completam. E para outros tantos, é o
momento de iniciar o período de penas ou regozijos eternos. Contudo, independentemente
do credo, a morte “é”. E isso, talvez, é o que a faz tão poderosa e
contundente. Diferentemente da vida, que “pode ser”.
No final das contas, por que
não falar de morte, fugindo do crucial instante que nossa jornada impõe? A
todos, diga-se de passagem. Um dia vamos parar em outro lugar, sumir da matéria,
do mapa. Antes disso, de modo geral, teremos enterrado (cremado e outras formas
de “guardar” o corpo) criaturinhas amadas. Agora, se não nos desprendemos nem de
uma camisa velha do armário, como desapegar de alguém que amamos profundamente?
“A morte é a libertação
total”, escreveu Mario Quintana. E com muito bom humor, o velhinho do hotel
Majestic concluía que “é quando a gente pode, afinal, estar deitado de sapatos”.
Nesse sentido, Erasmo Ruiz, um cara que conheci lendo um texto da Internet, diz
que “a poesia é um dos poucos redutos onde podemos aprender um pouco da arte de
morrer”. Assim, que nossa lucidez invada essas zonas perigosas – e libertadoras
– para apreendermos a morte e, junto a ela, a intensidade da vida. Morte e
vida, vida e morte, uma relação indissociável. (Adriane Lorenzon)