(Arte: autoria desconhecida)
Que correria é essa, alguém pode me explicar? Para onde vai todo mundo
com tanta pressa? Tirar o pai da forca? Eu quero entender – diferentemente da
frase atribuída à Clarice Lispector “viver ultrapassa qualquer entendimento” –
para quê tudo isso nesta época do ano? Ao compreendermos um processo, conseguimos
nos colocar no mundo de modo mais consciente, não a passeio, e, portanto, agir
de modo menos animal e impulsivo. “Basta de clamares inocência”, diz a música
de Cartola.
Algumas pessoas praticam esporte sempre; outras, só em dezembro. São os
adeptos da Corrida Maluca junto a Mutley, Penélope Charmosa e toda a turma –
com Dick Vigarista, claro, ditando “novas” regras de, por exemplo, como roubar
a rara vaga disponível no estacionamento de um shopping. Se você já esteve num lugar assim neste período, sabe do
que estou tratando. É constrangedor presenciar cenas em que ética e
generosidade são trocadas por coisas tão perecíveis.
As lojas estão entupidas, os caixas têm filas gigantescas, nos
hipermercados carrinhos no melhor estilo bi ou tritrem são empurrados ou
puxados pelo vivente “sorteado” pela própria família. Toda reclamação de falta
de dinheiro vai-se por água abaixo. Cerveja, vinho e espumante, refrigerante,
carnes, temperos, enlatados e afins vão se juntando, em fardos, aos itens já
escolhidos no fundo do pequeno transporte de carga. Agora, o esforço é válido
e, os maridos, de modo geral, não se importam com a demora nas compras.
Já passou na rua da Praia em Porto Alegre ou na 25 de Março em São
Paulo? E em Ciudad del Este no vizinho Paraguai? “Parece uma praça de guerra”, disse-me
alguém. Reviram cestos e prateleiras na ânsia de encontrar um regalo para dar sentido
à vida. Estabelecimentos para públicos mais bem aquinhoados não escapam da manifestação
do consumo exacerbado. E dá-lhe propaganda incitando o comprar – bens são
adquiridos pelo capital e a virtude nasce quando o consumidor passa a usar um
determinado objeto. Ô maravilha de sociedade a nossa!
Em manchetes, a mídia confirma a onda de saque autorizado mostrando gerentes
a estimular vendedores a não perderem clientes. Pareço ouvir: “Precisamos bater
a meta”. No final, no microuniverso, o saldo de vendas é bom, mas com um macrorresultado
doloroso: altos índices de acidentes em rodovias, a maioria por excesso de
álcool e velocidade. Carros retorcidos, vítimas estendidas lado a lado, choro
de familiares que constatam ou recordam como o Natal e o Ano-novo não são mais
datas para equivocados festejos. Sem falar dos excessos de comida, afogamentos,
mal-estares, vaidades, fingimentos...
Apesar de o ciclo vicioso se repetir, como é de se esperar, e nada
mudar efetivamente, todos fazem suas apostas de que o Natal e o Ano-novo serão
inesquecíveis desta vez. O peru é especial porque apita quando pronto e traz um
molho feito... sei lá, na Inglaterra. A roupa branca da virada trará sorte e a estreia
da lingerie virá com um emprego, o novo
namorado, a família menos triste e hipócrita. “O Natal me deprime porque
família não é fácil”, me diz uma amiga. “É verdade”, respondo. Se a família
soubesse do seu valor e potencial, amaria mais, na prática, e pronto.
Essas criaturas enlouquecidas buscam algo que não existe num centro
comercial, mercado, padaria, viagem... Conclui-se o óbvio: os produtos vão
estar nas prateleiras no dia primeiro de janeiro, não vão fugir. Encher o
carrinho e voltar para casa com um punhado de sacolas cheias completa o vazio
de suas vidas. Esbanja-se como se só o contrário fosse um mal. Enquanto isso,
irmãos nossos, perto ou longe, carecem de um pouco desse muito e seguem suas jornadas
sem a prodigalidade da vida contemporânea.